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Seja perfeita: somos criadas para a ansiedade

Um dos meus maiores defeitos é a procrastinação. Imagino que o seu, amiga, também. O da maioria das mulheres. Afinal, fomos ensinadas a “não deixar para amanhã o que podemos fazer hoje”. Penso, leio, pesquiso formas de como combater essa minha habilidade do mal, que me faz ser mestre em deixar as coisas pra depois, sem sucesso. (Uma ironia, se pensarmos pelo lado que estou apenas deixando a solução pra depois. RISOS.)

Outro dia ouvia um TED radio (um dos meus vícios, culpada) e a americana Reshma Saujani, a fundadora do Girls Who Code, falou comigo. Tocou aqui, no fundo do meu tímpano, dizendo que um dos maiores problemas da sociedade ocidental moderna é que socializamos nossas meninas para serem mulheres perfeitas enquanto os garotos são criados para serem corajosos, brave em inglês.

Ela argumenta que enquanto as escolas e as famílias incentivam os meninos a irem além, a caírem e se machucarem, se sujarem, tentarem conquistar aquela garota, enfim, a se desafiarem, as meninas são incentivadas a tirarem 10, a sorrirem, serem bonitas, recatadas, perfeitas. E o problema disso? As meninas ficam em casa, se protegendo do sol, enquanto os meninos tão aí, dominando o mundo.

Reshma cita um estudo da psicóloga Carol Dweck nos anos 80 (com alunos da 8th grade, 12–13 anos ) que mostrou que quanto mais inteligente as meninas, mais rápido elas desistiam de desafios acadêmicos colocados pra elas. Os meninos, pelo contrário, quanto mais difícil, mais eles se sentiam desafiados e tentados a resolver. Ela também cita outro estudo mais recente da Hewlett Packard que na hora de procurar emprego, as mulheres só candidatam pra vagas que a gente tem 100% das qualificações pedidas, enquanto os homens já se sentem confortáveis em se candidatar quando eles têm 60% dos critérios.

Indo mais pro lado cabeçudo, essa conversa me lembrou de algumas passagens do livro Reviving Ophelia, da terapeuta Mary Pipher, em que ela analisa a formação da personalidade de meninas de acordo com estudo de casos de pré-adolescentes e adolescentes pacientes suas. Estudando Cayenne, então com 15 anos, ela analisa como as meninas passam de crianças empolgadas a mostrar suas habilidades pros pais e irmãos a pré-adolescentes hiper autovigilantes, aspirando à perfeição com beleza e/ou na escola.

Mary argumenta que todos os seres humanos formam a sua personalidade (self, o termo que ela usa) na infância, em uma luta constante entre ser autênticos e em agradar as pessoas de interesse (pais, familiares, amigos próximos). As meninas, entretanto, antes mesmo de fechar essa personalidade, passam por outra etapa, um choque no qual as expectativas que elas devem cumprir mudam radicalmente: 

“ (…) todas as meninas experienciam (isso) na adolescência — o treino rigoroso para o papel feminino. Nesse momento as meninas são cobradas a sacrificarem partes de si mesmas que a nossa cultura considera masculina no altar do que é bem visto socialmente e a encolherem a suas almas bem pequenininhas”, tradução livre minha. (Pipher 38)

As regras da feminidade são as mesmas desde os anos 50, quando fomos ~aceitas~ no mercado de trabalho. “Seja atraente, seja uma dama, seja generosa e prestativa, se dedique para que as relações sejam boas e seja competente sem reclamar.” (39)

A pressão, diz a doutora Pipher, vem de todos os lados - escolas, mídias, amigos, família. As meninas ficam entre a cruz e a espada, tentado achar um lugarzinho em que ainda podem ser fiéis a si mesmas e serem aceitas pela sociedade. Tudo isso juntando a uma personalidade naturalmente insegura, sensível a pressão, mais traumas familiares, pessoais etc, geram milhares de variáveis de tragédias particulares. De anorexia a obesidade, de frigidez a devassidão patológica, TOC, depressão, ansiedade, ansiedade, ansiedade!

Essas informações fizeram meus anos escolares passarem como um flash na minha cabeça. Me lembrei das vezes que não quis levantar na sala de aula pra dar um exemplo com medo não só errar, mas ficar com aquela sensação de fracasso ruminando na minha mente. Lembrei dos vestibulares que não prestei pra não passar nervoso, das vagas de estágio a que não me candidatei porque achei que não estava pronta, e aí via aquele cara que eu achava ridículo conseguindo a vaga. Que ódio, e não dele, mas de mim.

Conversando por aí, é tão comum ver outras meninas que quando pequenas não tiravam suas dúvidas por vergonha e ainda não perguntam no trabalho pra evitar serem tratadas com aquela passividade agressiva de tantos chefes que nós já conhecemos, não é mesmo?

Lembrei de um chefe que tive que achava normal fazer comentários sobre roupa, cabelo, etc das mulheres da redação e de vez em quando soltava uma observação sobre o nosso trabalho. Eu só pensava que deveria fazer tudo direitinho e me vestir discretamente para chamar o mínimo de atenção possível. Lembrei de outro chefe que me contratou achando que eu ia derrubar o presidente do Supremo, mas só dava as melhores pautas para os homens, enquanto as meninas, certinhas, ficavam com o trabalho burocrático e os berros.

Ao ler até aqui você também lembrou dos seus próprios episódios em que ficou pensando em boas respostas no chuveiro, morrendo de raiva. Mas reclamar é ser “mal comida”, ser “histérica”.

A fala de Reshma me lembrou do medo em que somos condicionadas, da dificuldade de desafiar esse esquema. No livro Reviving Ophelia, ela fala que esse problema é tão naturalizado na nossa cultura que não há linguagem pra enfrentá-lo. “Protesto (das adolescentes) é chamado de delinquência, frustração é chama de bitchiness (quero traduzir pra vaquice? — alôu Dilma), se a menina se afasta é depressão, e desespero é causado pelas mudanças hormonais.” (Pipher 40)

Quero que com esse texto você veja a sua ansiedade como algo além de um traço de personalidade, como algo que deva ser tratado com objetividade, como algo que tenha uma causa, portanto não é eterna. Ouse ligar o foda-se. Seja corajosa.

E voltando ao assunto que me trouxe aqui, a procrastinação. Acho que entendi que enrolo tanto pra fazer qualquer coisa porque sofro consideravelmente quando elas não saem perfeitas. Quero até que a ligação que vou fazer quando terminar de escrever esse texto seja perfeita, sem erros de pronúncia ou gramática, e que dure o tempo ideal.

Maldita ansiedade. Maldito patriarcado.

Veja o TED Reshma Saujani: Teach girls bravery, not perfection aqui:


No último mês focamos aqui na Comum em autocompaixão. A ideia é que a gente consiga olhar para nossas características sem julgamento de valor, que a gente consiga se respeitar e entender que não somos o lugar em que os outros nos colocam. Para saber mais, clique aqui.


Texto publicado originalmente no Medium da autora.


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Natália Peixoto deixou o jornalismo em São Paulo, mas ainda escreve em Vancouver, onde mora desde 2014. Acredita em feminismo interseccional, em políticas afirmativas e na máxima de quem cozinha não lava a louça.