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Mulheres que viajam: Conselhos sentimentais de um xamã andino

As palavras de conforto não vinham de uma melhor amiga, mas de um homem pequeno, de pele escura e olhos bondosos, enrolado em roupas de lã colorida que combinavam com suas feições incas. Um xamã de Cusco Vieja.

“Você vai ficar bem, irmã. É hora de deixar ir.”

Estava em Cusco com uma equipe de blogueiros sul-americanos para participar da filmagem de uma web série. O episódio incluía a tradição da leitura das folhas de coca por um xamã local indicado pelo hotel, um antigo monastério transformado em hospedagem cinco estrelas.

Debaixo do céu cinza do fim de tarde nublado, o xamã contou histórias sobre os povos dos Andes peruanos e como eles viviam antes da chegada dos invasores europeus no século 16. Entoou canções tradicionais e contou lendas sobre animais, plantas, elementos, guerreiros antigos. Então me deu um punhado das folhas verdes e secas de coca para mascar e colocou mais algumas debaixo de uma pedra pequena, sobre um pedaço de pano colorido.

Ele suspirou, tomou minha mão pequena e branca em suas mãos fortes e escuras e começou a falar sobre o meu filho. “É um bom garoto, te traz muita alegria na vida. Mas é um menino sensível e vai enfrentar tempos difíceis, como todos nós. Você precisa ter paciência.” Ok. Paciência é um bom conselho. Então ele passou a falar do meu trabalho (“Sempre será muito instável. Quanto antes você aceitar isso, melhor.”) e da minha família.

Eu sentei e ouvi, dizendo quase nada, porque o silêncio parece a atitude correta ao tratar com o oculto. Não que eu seja uma especialista no assunto, mas parece justo deixar que o esotérico no comando faça seu trabalho sem nenhuma tagarelice da minha parte. E estava indo bem. O xamã não fez nenhum anúncio suspeito, como o de uma fortuna esquecida esperando por mim — o tipo de notícia surreal que seria bem-vinda. Ele repetiu várias vezes que eu precisava me reconectar à Terra, agradecer pelas oportunidades que tenho na vida e ter humildade. Conselhos genéricos e positivos.

Mas eu precisava de mais. O xamã acabou e fiquei sentada na frente dele, encolhida dentro do xale de lã cinza, encarando-o com meus enormes olhos castanhos.

“Parece que você tem algo a perguntar, irmã.”
“Sim, por favor. Tem uma coisa que você não mencionou.”
“Vá em frente, o que é?”
“Bom, sabe, é que tem essa pessoa...”

Pude ouvir o xamã suspirando. Claro que tem. Sempre tem “essa pessoa”. Esquimós, poloneses, quenianos, guerreiros, refugiados de guerra, rainhas: todo mundo tem alguém que foi embora, que não ligou de volta, que mentiu. A dor do coração partido não respeita nacionalidade, raça ou classe social. Acontece com todo mundo, em todo lugar. Um coração partido é universal.

Ele sabia o que estava vindo e eu também. Era inevitável. Talvez fosse a tristeza-mais-compreensão nos olhos do xamã, o fato de que eu não dormia direito há meses, ou de que eu estava na gelada Cusco quando tudo o que eu queria era um sofá, Netflix e minha gata no colo. Minha garganta começou a doer e meus olhos encheram de água. Desabei a chorar.

Por chorar quero dizer soluçar copiosamente, como eu vinha fazendo desde que meu namorado tinha pulado fora, alguns meses antes. Estou falando de um bimestre inteiro de insônia, perda de peso e telefonemas humilhantes. Amigos aguentaram pacientemente meus resmungos tristonhos na linha do “não sei onde errei” e agora era a vez dessa gentil alma inca aguentar meu drama afetivo.

Tentei, no melhor espanhol improvisado possível, explicar como tudo havia acontecido. Como aquele que eu jurava ser meu amor verdadeiro e eterno um dia sentou no sofá da sala e disse as palavras que ninguém quer ouvir: “Não te amo mais”. Queria explicar como me senti inútil, descartável, desmerecedora de amor. Queria dizer o quanto eu estava puta da vida, triste, destruída. Como o que eu achava que tinha sido a época mais feliz da minha vida, em um segundo de uma noite qualquer, se transformou numa coleção de memórias amargas. Como eu sabia que os próximos longos meses continuariam a ser desanimadoramente difíceis.

Você sabe como é. A chance é que já tenha passado por isso também. E porque o coração partido acontece a todos nós, o xamã não se abalou com o fato de que eu não conseguia nem articular uma frase completa, quanto mais expressar as tristezas profundas da minha alma angustiada. Ele só me abraçou. Gentilmente, como você abraça alguém que não conhece direito. Ele me balançou de um lado para o outro, devagar, como você faz com uma criança que caiu e ralou o joelho. E seguiu dando tapinhas nas minhas costas.

“Shhhhh. Llora, llora, hermanita. Chorar faz bem. Essas coisas acontecem. Tente lembrar dos bons momentos e ser grata. Vai passar.”
“Mas eu gosto taaaaaaaaanto deleeeeeeee…”

Com a mão livre, o xamã mexeu nas folhas de coca em cima do pedaço de tecido.

“Ele não vai voltar, irmã. Essa história acabou.”
“MAS POR QUÊ?!”
“Não posso responder. E não faz mais diferença.”
“Não é justo! Eu fui uma boa namorada! EU SOU ESPECIAL!”
“Sim, sim, é claro que é. Mas preste atenção, tenho algo importante a dizer.”

Sentei para ouvir.

“Isso vai voltar para ele. Essa dor que você sente, uma dor que ele não conhece ou entende, essa mesma dor ele vai sentir no futuro.”
“Sério? Você quer dizer que alguém vai dar um pé na bunda dele? Você tem certeza? Quando?”

Não que eu estivesse clamando por vingança, mas sou humana. Saber que o agente da minha dor olharia para trás e compreenderia o que eu estava sentindo era uma perspectiva satisfatória. Limpei o rosto, arrumei o xale e peguei mais um punhado de folhas de coca.

“Tem mais?”
“Sim, tem mais.”
“Genial. Quero saber tudo.”
“É só uma coisa. Você precisa abrir o coração, irmã. Existe amor no seu futuro.”
“Amor? Pra mim? Não, valeu. Amor nunca mais.”
“Você vai querer. É inevitável. Só que você precisa saber enxergar.”

Ele estava certo, é claro. Podia sentir que apesar do tempo nublado, da insônia e do rancor, havia ainda um caminho a percorrer. Podia doer, mas não era o fim.

Não sei com quantas histórias de coração partido um xamã inca trabalhando em um hotel tem que lidar durante o dia. Imagino que várias. E não vou dizer que ele leu tudo nas folhas de coca. Talvez ele só quisesse me fazer sentir bem comigo mesma. E o que há de errado nisso? Às vezes a gente precisa mesmo de uma ajuda para absorver esses clichês da vida amorosa: o mundo continua girando, um fim é sempre uma chance de recomeço, tenha gratidão pelos bons momentos, tudo acontece por um motivo e coisa e tal.

Agradeci com um abraço e dei o meu lugar à próxima pessoa da fila. E então subi as escadarias do monastério sob os olhares dos personagens da história de Cusco pendurados em retratos sinistros nos corredores de pedra. Era hora de arrumar a mochila, tomar um banho de banheira e dormir uma noite de sono restaurador.

Na manhã seguinte eu estava voando de volta para casa, sorrindo e comendo chocolates peruanos enquanto o avião sobrevoava a Amazônia. Era hora de seguir em frente.


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Texto publicado originalmente no livro Mas Você Vai Sozinha?


Gaía Passarelli é escritora de viagem, jornalista musical, foi VJ da MTV e também apresentadora em projetos para o Google e rede Cultura. Entre suas andanças pelo mundo, além de atualizar seu blog How to travel light, já colaborou com vários jornais e revistas, como Ilustrada, Rolling Stone, Bizz, VIP, Viagem e Turismo, TPM, entre outros.