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Mulheres que viajam: Sobre como teimar em confiar mais

Do comprometimento a longo prazo em deixar as certezas de lado, eu desenvolvi um estranho carinho pela teimosia. Não aquela que te impede de fazer as coisas, mas aquela que te faz passar por cima das inseguranças e continuar “porque sim”. A minha jornada nem teve um propósito espiritual ou de autoconhecimento, mas viajar sozinha definitivamente me permitiu aceitar melhor quem eu sou, com todas as minhas manias e maus hábitos. Ao menos o suficiente pra hoje admitir que eu decidi fazer isso por uma razão bem menos complexa e nobre do que as pessoas ao meu redor tentavam entender: eu queria viajar e queria que fosse do meu jeito.

Era uma fase pela qual eu precisava passar - de visitar lugares que desafiassem a forma como eu pensava, de não fazer nada só porque precisava ser feito e sem a preocupação de me explicar pra ninguém. Acontece que viajar sozinha, não importa por que motivo, já começa com um roteirinho além dos destinos que você planeja conhecer. Tem também que incluir todas as justificativas de que você não é maluca ou irresponsável, que não está fugindo, que você vai tomar cuidado, que seus amigos não podiam mesmo se comprometer com planos semelhantes e por aí vai. Antes de ir embora você deve isso pras pessoas que te amam e se preocupam com você, é claro que eu entendo.

A ironia é que exatamente essa preocupação, que nós obviamente absorvemos ao longo da vida, é o que te faz manter em prática todos os conselhos já ouvidos sobre como evitar problemas e se prevenir sendo mulher e se manter dentro de uma bolha de segurança. Pra todo o sempre, sem que você perceba.

Isso porque a gente tende a antecipar todo um cenário de problemas antes de começar a se mexer, e milhares de vezes interrompe os planos na fase do “mas e se…?”. Ou então até continua, mas segue nas pontas do pés.

Embora muitas das medidas que eu adotei no início da minha viagem sejam de fato importantes quando se está em um país que demanda certa adaptação aos costumes locais, é também muito fácil exagerar na paranoia. E suspeitar de tudo e de todos, mesmo com o propósito de segurança, acabou rapidinho me afastando do real motivo pelo qual eu queria viajar sozinha a princípio.

Eu cheguei na Índia em um momento super delicado, logo depois de um caso horrendo de estupro coletivo ter uma repercussão imensa dentro e fora do país, levando protestantes pras ruas e forçando o debate sobre a situação das mulheres indianas. Em todo canto me lembravam que eu era um alvo e tentavam me alertar sobre aonde ir, o que vestir, com quem falar. Se eu já tomava cuidado redobrado quando saía à noite, passei a começar minhas andanças bem cedo pra fazer tudo o que eu queria durante o dia, estar de volta antes de escurecer e aí não sair mais da minha toca. Se antes eu evitava dar muita informação sobre a minha vida pessoal, nas minhas primeiras semanas por lá eu andava com uma aliança falsa e até tinha um discurso ensaiado de que meu marido estava no país a negócios e que eu o encontraria em alguns dias.

Eu ainda estava aproveitando cada segundo da minha viagem e todos esses macetes entraram no automático, como geralmente acontece. Só que, mesmo seguindo à risca o livro da mochileira sobrevivente todo certinho, ainda tinha uma frustração e aperto no peito que eu esperava ter abandonado na estrada. A questão é que problemas te acompanham ao redor do globo e a insegurança, e tudo que vinha com ela, começava a pesar demais na minha bagagem.

A ideia não era construir um muro portátil ao meu redor para me proteger no caminho, era de uma certa forma me livrar de barreiras que já estavam ali estabelecidas. Era enfrentar tudo por uma perspectiva diferente. É engraçado hoje revisitar aquele momento e lembrar quanto me custou entender que eu eu podia, sim, me dar ao luxo de baixar um pouco a guarda. Até na Índia.

Depois de uma vida inteira ouvindo que “todo cuidado é pouco”, eu me vi do outro lado do mundo, sozinha, tentando me convencer de que talvez ter tanto cuidado não estivesse me ensinando tudo o que eu estava disposta a aprender. Eu não posso dizer que estou completamente livre de receios e desconfianças - e nem vou recomendar isso pra mulher alguma, que viaje ou não, já que você pode, sim, evitar muitos problemas -, mas pouco a pouco aprendi a balancear a paranoia, ser mais receptiva e dar um voto de confiança pras pessoas que tentam se aproximar, ou até pra que eu mesma possa me aproximar delas.

Você sempre pode ao menos ouvir o que as pessoas têm a dizer - nem que seja pra aprender que a opinião delas a seu respeito não é a mais lisonjeira. E conversas entoadas por opiniões radicais foram o máximo com o que eu precisei lidar nas minhas viagens. Desde que me dei conta de tudo que eu estava me privando de conhecer e passei a tentar confiar mais nos estranhos ao meu redor, eu não tive uma experiência de perigo iminente. Eu não tive medo ou me arrependi de ter passado pelas experiências que passei.

Pode ser apenas uma versão minha mais leve e de braços abertos ou também pode ser que o mundo não seja tão restrito assim pra mulheres que se jogam nele. Pode ser, inclusive, que uma parte muito grande do mundo prefira te chamar de aventureira e não maluca e ainda te ofereça ajuda quando as coisas não estão saindo muito bem, sem nem te pedir nada em troca.

E preciso reforçar que não dá pra acertar sempre. Você está sozinha também na tomada de decisões e nem sempre consegue julgar o que faz mais sentido. Mas na minha ingenuidade ou teimosia, o que não fazia sentido algum era ter me deslocado até um dos países mais populosos do mundo e ainda me sentir isolada por medo, mesmo com tanta gente bem intencionada, sorrindo e tentando conversar comigo a cada dois passos que eu dava.

Se a minha ideia de viajar sozinha era poder fazer tudo do meu jeito, eu aprendi na marra que isso não significa que as coisas vão ser como eu quero. Pelo menos não no sentido utópico, de toda experiência ser maravilhosa e sem poréns. O que realmente acontece é que você se coloca em uma situação que demanda uma constante reinvenção de como reagir a crises e contratempos, a sua própria maneira e de acordo com cada contexto. De uma forma muito mais imperativa do que quando você está no seu ambiente seguro ou mesmo quando viaja com amigos ou parceiros.

Claro que os riscos de ir sozinha existem e ninguém precisa ignorar as advertências e conselhos sobre como se prevenir. Mas num mundo com tanta gente, é mais provável que a maioria das pessoas que cruza o seu caminho não seja uma ameaça. É uma aposta, mas eu prefiro acreditar na probabilidade de que posso aprender mais do que me machucar com quem está ao meu redor. E saber mais sobre o outro te aproxima ainda mais de um verdadeiro interesse pelo outro, como num ciclo vicioso de ser mais humana mesmo.

Talvez esse seja só mais um hábito que eu adotei em nome da teimosia, mas com algumas barreiras a menos o mundo ficou extremamente mais plano e navegável pra mim como mulher, viajante solo, ou o que quer que eu seja e tenha algum potencial pra me restringir.


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Ana Caselatto já foi jornalista, relações públicas e fotógrafa. Desde 2012 tem sido nômade e somente trabalhado em áreas que ela desconhece, mas que a permitam continuar viajando. Nos últimos quatro anos passou por mais de 25 países, principalmente na Ásia, África e América do Sul.