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Cidades sustentáveis são cidades democráticas

Ilustração: Flávia Totoli

Ilustração: Flávia Totoli

Sustentabilidade é um conceito que ganhou força ao longo dos anos e se firmou como foco de decisões em todas as discussões sobre planejamento urbano e direito a cidade. Uma cidade sustentável é uma cidade em que a autonomia de seus ocupantes está garantida, por meio de medidas capazes de prover as necessidades fundamentais que surgem do uso e ocupação dos espaços das cidades.

É equivocado focar ou pensar que falar em sustentabilidade se limita às questões ambientais. Sustentável é aquilo que tem capacidade de manter-se sozinho. Muitos avanços foram garantidos com o implemento do Estatuto da Cidade, mas mesmo com todos esses instrumentos, ainda assim, temos cidades segregadas, excludentes, onde os conflitos sociais são expressos livremente no traçado urbano. Isto posto, podemos seguramente afirmar que não há possibilidade de chamar nossas cidades de sustentáveis e muito menos de democráticas, pois, a cidade sustentável é impreterivelmente democrática e acessível a todas e todos.

Há uma isenção por parte dos urbanistas, da responsabilidade de aprofundamento das questões sociais que influem nas decisões que norteiam o planejamento do espaço urbano e garantem o direito pleno a cidade. Compreender a raiz das desigualdades reproduzidas e produzidas no espaço urbano.

Falta, para toda e qualquer decisão estabelecida nessa área, o olhar interseccional, para que essas dinâmicas sejam apuradas com profundidade e possam abrir espaços para propostas e implementos de decisões mais conscientes e que não deixem lacunas, como vem acontecendo.

As cidades são espaços de disputa em que o traçado nos permite identificar os discursos opressores que se formaram pelo curso da história e estruturaram nossa sociedade. A configuração do nosso espaço urbano é onde espelham-se as desigualdades sociais e essas são reforçadas, reproduzidas, as exclusões, as segregações e as delimitações dos lugares sociais ditados pelas opressões estruturais que determinam quem é privilegiado e quem é escamoteado pela ação direta do Estado. Essas particularidades, embora não citadas, são assimiladas pelas pessoas que interagem entre si e com o espaço.

Andando pelas cidades, sabemos intuitivamente se estamos em lugares sociais acolhedores, percebemos os lugares hostis e permanecemos nos lugares em que o sentimento de pertencimento é despertado. Também sabemos exatamente onde estão os espaços de poder e decisão, onde mora o privilégio. Sabemos onde a cidade é branca e onde a cidade é negra. Sabemos também quais são os espaços femininos e masculinos, ainda que sensivelmente se misturem ou camuflem, essa divisão de gênero também acontece.

Mas ao se omitir da responsabilidade, enquanto organizadores, articuladores e pensadores das cidades, de se aprofundar nas questões que definem e corroboram com essas características, negligenciando as realidades que se reproduzem e se entrecruzam no espaço urbano, deixamos lacunas que comprometem todas as decisões urbanísticas que tem como princípio garantir o pleno exercício do direito à cidade das pessoas que compõe esses espaços.

Quando falamos em opressões, estamos obviamente falando de estruturas sociais naturalizadas, de relações de poder em que há uma desvantagem garantida para que vantagens possam ser centralizadas em algumas mãos. E as mais atuantes e visíveis nas nossas estruturas sociais são as opressões raciais e as opressões de gênero. O espaço urbano não tem sido democrático bem como o direito a cidade, que embora esteja, em tese, garantido constitucionalmente, na prática não tem sido devidamente vivenciado.

O espelhamento das questões raciais não resolvidas no campo social é facilmente identificado na configuração do tecido urbano. Mas quando falamos em machismo, misoginia e cultura patriarcal, temos uma dificuldade mais acentuada de apurar nas cidades as ações que corroboram com o impedimento do uso pleno da cidade pelas mulheres. Nesse sentido, sensibilização para as vivências relatadas são fundamentais.

Mas como, se os espaços em que está o poder de decisão não rompem com a lógica que atua no tecido urbano? Ele continua sendo branco e heteronormativo.

Como podemos considerar que uma mulher exerce sua autonomia no uso da cidade, se a expressão da misoginia e do machismo vigente influencia na mobilidade urbana, nas informações históricas contidas nas cidades, no mobiliário que a cidade disponibiliza, impõem os horários e lugares de circulação, entre outras coisas?

A cidade, construída por homens e administrada por eles, é fálica (reprodução da falocracia atuante na sociedade patriarcal), com seus prédios que cabem perfeitamente nos gostos dos especuladores, mas que informam que a subjetividade da mulher não é importante. Não poderia ser diferente por questões de espelhamento natural, a identificação está pautada na lógica da divisão público/privado, onde a mulher, invariavelmente era confinada no espaço privado e não no público/urbano.

A ausência quase total de marcas históricas que evidenciem a atuação da mulher na formação e construção das cidades também é outra informação que passa despercebida de tão naturalizada. Em nenhum ponto da cidade há uma definição clara da participação de mulheres sendo informada, nem por nomes de ruas, nem por monumentos, nem pelo traçado do mobiliário urbano.

A dicotomia público/privada que permeia as limitações da mobilidade social da mulher ainda existe e é naturalizada, pois também não é de nossa cultura pensar e discutir cidades como usuárias/os. O espaço urbano ainda nos diz que nosso espaço é doméstico e que concessões foram feitas apenas para atender à necessidade capitalista de exploração de mão-de-obra subalternizada (mulheres chegam a posições de comando com que frequência? Isso também está expresso na configuração do espaço urbano, uma vez que não temos autonomia para circular com a mesma liberdade com que homens tem).

A questão da maternidade, tão aparentemente valorizada pela sociedade e sempre associada com uma função suprema e única da mulher, é desmentida pelas péssimas condições de tratamento de nossas vias e passeios urbanos (calçadas), bem como pela insatisfatória política de implantação de creches, fraldários e espaços infantis nas cidades. Universidades e espaços corporativos raramente fazem essas previsões nos seus planejamentos espaciais, os meios de transporte públicos não são projetados para atender as necessidades de mulheres mães que se locomovem pelas cidades.

E quando consideramos a presença prejudicada das mulheres nas cidades, devemos inadvertidamente lembrar que não somos universais e que, por isso as necessidades que surgem têm diversos desdobramentos de acordo com nossas vivências sociais. Somos negras, indígenas, brancas, asiáticas, e entre outras classificações que também são condicionadas pelo contingente financeiro, e que devem ser consideradas quando das discussões que se pretendem pensar as cidades e suas ações que garantam nosso direito a ela.

Mais do que nunca, devemos reverter nosso olhar, treinado culturalmente para aceitar e manter a cidade tal qual nos apresentam, questionando e exigindo nossa participação, tendo em vista que os problemas que nela aparecem são problemas nossos. Não poder caminhar sozinha pelas ruas, com medo de ser constrangida ou molestada, pois as condições são precárias e favorecem ações arbitrárias nos tornando vulneráveis, é problema comum experimentado por mulheres em pleno século 21. Devemos nos articular e nos instrumentalizar dentro dessas discussões, para cobrar espaços femininos que levem nossas questões e tenham um olhar específico que possa abarcar especificidades e preencher lacunas.

A Sétima Conferência das Cidades, que aconteceu há cerda de quatro meses, pela primeira vez teve uma mesa cujo tema era discutir a participação de mulheres nas cidades. Isso só foi viabilizado porque havia uma mulher atuante dentro da última gestão municipal, brigando por esse espaço. Infelizmente, o desconforto é o combustível de quem luta, e essa estrutura patriarcal que vem decidindo tudo historicamente, em todas as áreas, formando e mantendo seus privilégios as custas das minorias sociais que vivem o desconforto não vai se mobilizar para abrir espaços, inclusive urbanos, para a implementação de ações que nos contemplem.

Precisamos, então, tomar, ocupar e articular. E nas áreas que versam sobre planejamento do espaço urbano e direito a cidade, não é diferente. Mais do que nunca devemos cunhar, definitivamente, que cidades sustentáveis só serão possíveis se forem democráticas.


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Joice Berth é arquiteta e urbanista, tem 39 anos, e pesquisa questões raciais e ligadas ao feminismo. É colunista do site Justificando.com e da Imprensa Feminista, além de escrever para o site Nó de oito.


Flavia Totoli é nascida e criada em sampa. Sempre com um caderno de rascunhos na bolsa. Apaixonada por imagens e contar histórias (de preferência tudo junto).

Joice Berth

Arquiteta e urbanista, 39 anos, pesquisadora sobre questões raciais e feminismo. Colunista do site Justificando.com e da Imprensa Feminista, escrevo também para o site Nó de oito.