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8 passos para você entender se é a favor ou contra a lei que regulamenta a prostituição

Dizem que a prostituição é a profissão mais antiga do mundo. Na Grécia antiga as prostitutas eram as únicas mulheres que se comunicavam com os homens como iguais. Com o passar do tempo e as crenças moralizantes impostas pela religião, as prostitutas saíram do papel de destaque, de mulheres livres, e foram jogadas às margens da sociedade. É onde estamos hoje.

Prostitutas são humilhadas, exploradas e abusadas de todas as formas possíveis. E aqui não vamos falar da prostituta de classe média, da “gatinha de luxo” ou de quem tem um “sugar daddy” que paga o condomínio de um apartamento em Moema ou Copacabana. O foco é falar da maior parte das prostitutas, aquelas que mal conseguem pagar o aluguel com o dinheiro que ganham nas ruas. Não é sobre “Uma Linda Mulher”. É sobre a realidade angustiante de fazer parte da camada mais baixa, financeiramente falando, da sociedade.

O Projeto de Lei 4.211/12, de autoria do deputado federal Jean Wyllys, pretende regulamentar a atividade dos profissionais do sexo e foi batizado de Gabriela Leite, prostituta por escolha, estudante de sociologia e ativista pelos direitos das profissionais. Autora do livro “Filha, Mãe, Avó e Puta”, Gabriela Leite fundou a ONG Davida para fortalecer a cidadania das prostitutas, idealizou a grife Daspu, desenvolvida por prostitutas, e foi candidata à deputada federal pelo Partido Verde. A ativista morreu aos 62 anos vítima de câncer.

A discussão sobre a lei tem ondas desde 2012 e nos últimos tempos foi retomada. Escolher um lado nessa história vai muito além de apenas escolher um lado. Falamos sobre vidas, futuros e oportunidades. Alguns pontos importantes:

1 – Prostitutas existem

Estamos discutindo uma ocupação que existe e é realizada por mulheres de todas as idades. Não é uma situação hipotética, é realidade. Essas mulheres precisam cuidar dos filhos, pagar o aluguel, comprar comida e sobreviver.

Alguns argumentos contra a lei são de que a prostituição não deveria existir. O que fariam, então, essas mulheres? Há urgência para resolver questões práticas do dia a dia e quando isso existe não é possível filosofar sobre um mundo ideal imediatista.

2 – Escolhas

Prostituição não é escolha. Pode até ser escolha entre o menos pior, mas se você não tem um cardápio de verdade, pode-se chamar isso de escolha? Esse argumento chega a ser ofensivo.

Mulheres são levadas à prostituição. E não é porque se deixaram, é porque seriam tratadas de maneira indigna não importa o espaço que ocupassem. Empregadas domésticas são assediadas por seus patrões, assim como operadoras de caixa ou babás. Mulheres, principalmente as negras e de baixa renda, são exploradas em qualquer profissão que estejam. E a necessidade de sobreviver não permite que isso seja debatido ou questionado. Não há revolução de barriga vazia.

3 – Desumanização e silenciamento

O que dizem as prostitutas? Não é como se elas fossem pessoas sem voz ou agência. Existem, inclusive, associações que as representam. A Associação de Prostitutas de Minas Gerais (Aprosmig), por exemplo, defende a legalização da profissão e luta pelo direito a aposentadoria e benefícios.

O que temos visto em debates é que as feministas acadêmicas e de classe média resolveram tomar para si o discurso e as decisões, como se precisassem ser porta-vozes dessas mulheres. Mas as prostitutas, enquanto classe e não individualmente, já estão organizadas e têm sua própria voz. Podemos discutir sobre, mas o mais importante é ouvir o que essa voz diz.

4 – Estupro

Trabalhadoras sexuais correm mais riscos do que as outras mulheres. Imagine estar em um quarto com um desconhecido que pagou por sexo e é cria de uma sociedade que objetifica mulheres, além de lhe dizer que a ele nada pode ser negado? Assustador. Mas a solução não está em criminalizar mulheres. A solução é a transformação social e o fim da Cultura do Estupro e todos os seus desdobramentos.

É claro que profissionais do sexo correm mais riscos de serem forçadas a práticas que não desejam ou sejam humilhadas durante o ato. Mas isso também acontece com mulheres casadas. Também acontece em primeiros encontros. O cerne do problema não é a prostituição.

A profissão é reconhecida pelo Ministério do Trabalho desde 2002. Em sua realização está prevista a exposição a intempéries e discriminação social, além do risco de contágio de doenças sexualmente transmissíveis (DST), maus-tratos, violência de rua e morte. Enquanto nós, enquanto sociedade, encararmos abusos e misoginia como insalubridade e periculosidade de ocupação, nos afastamos cada vez mais da justiça social e de gênero.

5 – Objetificação e indústria

É impossível falar de prostituição sem olhar para a sociedade como um todo. Qual o papel reservado para mulheres na mídia, publicidade, TV e revistas? É o papel de objeto sexual, sempre pronto para realizar desejos masculinos ou fazer com que esses desejos nasçam. Mulheres são desumanizadas em todos os horários da TV aberta, tratadas de maneira inferior e têm seus corpos mais valorizados do que sua intelectualidade. Como esperar que se aja de maneira diferente com as prostitutas?

Lutar contra uma lei que pretende oferecer direitos às mulheres não vai mudar o papel que temos na sociedade. A mudança deve ser feita ao contrário: primeiro precisamos ser respeitadas e ter direito à oportunidades verdadeiras, depois devemos abolir ocupações que nos explorem de qualquer forma.

6 – A questão trans

Não são apenas mulheres cisgênero que se prostituem. Mulheres transgênero também o fazem e são ainda mais marginalizada. Uma fala marcante da cantora Assucena Assucena, do grupo As Bahia e a Cozinha Mineira, é que as travestis são seres da meia noite e que “botar a cara no sol” é resistência.

Prostitutas cisgênero podem ir tranquilamente até a padaria ou mercado sem que ninguém saiba qual sua ocupação. Mulheres trans não precisam nem contar qual sua ocupação porque as pessoas, antes de qualquer coisa, já as ligam à prostituição. O assédio, humilhação e riscos no trabalho são ainda maiores.

O Projeto de Lei visa, também, proteger essas mulheres tão marginalizadas, silenciadas e ignoradas tanto pelo Estado, quanto pela sociedade e por segmentos do movimento feminista.

7 – Mundo perfeito

Em um mundo perfeito a prostituição não existiria. Primeiro porque a sexualidade seria vista de forma livre e espontânea. Segundo porque a exploração feminina não seria mais uma questão existente. Mas, infelizmente, esse mundo ainda não está pronto.

Construir um mundo perfeito dá trabalho, mas pode ser feito. E tudo isso tem base em políticas públicas, ações inclusivas e oportunidades. Oferecer cursos profissionalizantes a mulheres que trabalham com prostituição, auxílio legal, informação sobre direitos, empoderamento e não se posicionar de maneira moralista, por exemplo, são atitudes que constroem um caminho possível.

A Lei não é o fim, é o meio. É o primeiro passo para que essas mulheres voltem a ser tratadas como humanas e tenham amparo legal para exercer sua profissão. E então podemos começar a trabalhar para construir um futuro em que nossos corpos não sejam a única fonte de renda possível.

8 - Falhas no projeto de lei

A Lei Gabriela Leite é perfeita? Não. Assim como nenhuma lei o é. Porém, ir contra ela não é a saída. Trabalhar em seu texto, oferecer novos caminhos e apontar uma redação mais inclusiva e completa são caminhos mais longos e trabalhosos, mas os únicos honestos e respeitosos com mulheres que existem e realizam diariamente um trabalho arriscado e marginalizado.

Para ler

Nem toda prostituta é Gabriela Leite: prostituição, feminismo e leis


Carol Patrocinio é jornalista, feminista e gosta de olhar as coisas por um ângulo diferente. Acredita que o amor muda o mundo, mas que a raiva é o combustível mais potente da revolução. É co-fundadora da Comum, mãe e oferece consultoria para negócios que querem fugir de esteriótipos de gênero.