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O que o Caso Feliciano nos conta sobre sexismo e espaços de poder

Ofuscado pelos Jogos Olímpicos, o “Caso Feliciano” tem reviravoltas quase diárias e que tornam impossível traçar qualquer análise ou previsão, mas a própria incerteza que ronda a história já traz consigo uma mensagem importante sobre a cultura do estupro e sobre como os espaços de poder são sexistas e violentos com as mulheres.

Se você não sabe do que eu estou falando, um breve resumo: Patrícia Lélis, uma jovem de 22 anos, acusa o deputado Marco Feliciano de tentativa de estupro.

O caso teria ocorrido em junho e ela diz que foi ameaçada pelo chefe de gabinete de Feliciano e coagida a gravar vídeos defendendo o deputado e inocentando-o. Só que a cada hora uma versão é desmentida e as partes alteram sua história (aqui tem um resumo muito bom). O que temos até agora são vídeos que mostram o chefe de gabinete, que chegou a ser detido, e Patrícia negociando  o preço do silêncio da jovem para que ela não fosse a público contra o deputado.

Em bom português: ninguém sabe de nada.

As histórias estão mudando o tempo todo e as versões vão sendo seguidamente derrubadas. Se o nosso instinto feminista é acreditar na vítima e tomar sua palavra como verdadeira, nesse caso claramente é necessária uma precaução tripla e esperar para ver o que as novas evidências vão mostrar.

Quando há política no meio, a gente sabe que o jogo de manipulações e mentiras entra no modo vale tudo e fica difícil de saber em quem confiar. Precisamos ter isso em mente o tempo todo.

Mas ninguém tentou refutar até agora a tentativa de estupro, e por isso ainda vale a pena explorar o terreno espinhoso que virou toda a história. Para não dizer que ninguém negou, Feliciano gravou um vídeo dizendo que a denúncia de Patrícia é uma farsa. De resto, seu chefe de gabinete está tentando se livrar de acusações secundárias (chantagem, compra do silêncio, intimidação) e quer garantir que suas ações sejam vistas como independentes e sem relação com as de Feliciano. Isto é: se eu chantageei foi só eu e ninguém mais sabia. Só que especialmente depois do vídeo da negociação, está difícil negar que algo de errado o deputado e representante da bancada evangélica fez. E isso é o mais importante de tudo.

Todas as ações subsequentes vieram numa tentativa de tirar o foco do crime sexual que supostamente ocorreu. Deslegitimar a palavra de Patrícia, indiciá-la (!) e por aí vai. Se a história continuar seguindo o mesmo curso, dificilmente Marco Feliciano sofrerá qualquer consequência. No máximo, seu chefe de gabinete pode ser afastado.

É revoltante, mas não é nada novo ou fora do padrão perto do que acontece no alto escalão de poder desse país. Jair Bolsonaro disse explicitamente que só não estuprava uma deputada porque ela não merecia; o Ministro da Saúde contraria todas as pesquisas disponíveis e fala que as mulheres trabalham menos do que os homens; os xingamentos sexistas rolam soltos num espaço dominado por homens. Nem mesmo incitação ao ódio ou acusações de crimes hediondos como o estupro são capazes de destituir estes homens do poder.

Então atentemos: há potencialmente um crime hediondo sendo cometido por um deputado que gosta de se vender como o guardião da moral e dos bons costumes e, como é de praxe em casos de estupro, a palavra da vítima está sendo constantemente relativizada e posta à prova. É ela quem vai enfrentar sanções judiciais por ter feito a denúncia, e não o acusado de estupro. Culpabilização da vítima? Imagina.

Atentemos também (mais uma vez) para a total impunidade da violência de gênero. Feliciano é acusado de um dos crimes mais graves do Código Penal e mal se prestou ao trabalho de comentar.

Pelo contrário, tomando por base seus canais oficiais nada disso está acontecendo. Há apenas recados de que explicações não são necessárias (mesmo que você seja um representante público eleito pelo voto direto!). Não só ele não se sente ameaçado como o caso não é digno o suficiente de ser esclarecido.

E por último, mas de jeito nenhum menos importante, vale olhar para como a violência contra a mulher é mesmo democrática. Ela atinge a todas, basta ser mulher. Patrícia tem visões extremamente conservadoras, era apoiadora de Marco Feliciano e de suas posições retrógradas. Achava que feminismo era um mal, uma piada. E ainda assim foi vítima de violência e agora conta com o amparo deste mesmo movimento para ter alguma chance contra um homem poderoso.

Por mais que não concordemos com suas posições, é crucial apoiá-la - ainda que com precaução. O feminismo não pode escolher quem defende e deve ser tão abrangente quanto o sistema que busca derrubar.


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Nana Soares é jornalista que vai escrever sobre desigualdades de gênero até elas deixarem de existir. Co-autora da campanha contra o abuso sexual do Metrô de São Paulo, escreve sobre feminismo e violência contra a mulher para o Estadão e faz parte do Pop Don’t Preach, um podcast sobre feminismo e cultura pop.