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Quando o machismo destrói nossa paixão pelo futebol

Eu devia ter uns seis anos de idade quando fiz a pergunta que considerei perfeita para conseguir entrar no universo do meu pai:

- Pai, posso torcer para o seu time de futebol?

A resposta, é claro, foi um “sim” orgulhoso e entusiasmado. Dali em diante, hastear a bandeira, decorar hinos de futebol e memorizar a escalação foram adicionadas às minhas tarefas de boa filha.

De segunda a sexta-feira, dez na prova. Sábado e domingo era dia de acompanhar o time dos homens da família e, de certa forma, a liberdade deles também.

Se eu era reprimida em dias úteis, em dias de jogos era autorizada a falar alto, pular, brincar com os primos, acender traques e dormir tarde para poder assistir ao programa Cartão Verde. Além de me proporcionar experiências ousadas para uma garota, o futebol era o único assunto certeiro que me ligava ao meu pai. Eram tantos momentos ruins; pelo menos algum deles tinham que ser divertidos, né?

O tempo passou, escolhi o jornalismo como profissão, conquistei uma vaga na editoria de esportes, ganhei uma camisa do tal time em um concurso cultural nacional, recebi autógrafos, entrevistei meus principais ídolos, abracei um goleiro campeão mundial. Como torcedora, só sucesso. Na relação com meu pai, fracasso.

Há cinco anos, vim morar em São Paulo. Nesse tempo todo, fui apenas a um jogo (e não foi no estádio oficial), não acompanhava mais as notícias, não fazia ideia de quem era jogador A, B, C ou D. De certa forma, aquele desinteresse me incomodava um pouco. Sempre ouvi dizer que “não se troca de time de futebol” e que isso é “traição, falta personalidade, fraqueza”. Imagine só a gravidade de uma mulher assumir-se ex-torcedora num meio tão misógino!

Mas se o jornalista e escritor uruguaio Eduardo Galeano dizia a famosa frase machista repetida exaustivamente por aí que “um homem pode mudar de mulher, de partido político ou de religião, mas não de time de futebol”, a pintora mexicana e inspiração de muitas mulheres, Frida Kahlo, nos salva com a linda citação que diz “onde não puderes amar não te demores”.

Escolhi a liberdade de ser quem sou e ficar com aquilo que me traz amor, alegria ou paz. Se isso significa abandonar algo que não faz mais sentido para mim, tudo bem. Entendi que a escolha do passado foi motivada não por uma paixão real, mas para atender uma necessidade daquele momento. Quantas de nós fizemos algo parecido para conquistar o pai, o namorado, o professor, o irmão, o amigo, aquele homem que admiramos e queremos por perto? Quantas de nós fizermos isso não por amor, mas para insistir em uma relação abusiva?

Apenas para elucidar: apoio e admiro todas as mulheres que ocupam o estádio de futebol, acompanham os campeonatos e brilham na cobertura jornalística. Espero que elas continuem lá para fazer com que nosso acesso a esses lugares seja respeitado e exaltar também os campeonatos disputados por mulheres. Temos esse direito!

A intenção desse texto é questionar nossa relação com o futebol e problematizar a maneira com que o mundo futebolístico trata as mulheres.

Por isso, trago algumas considerações:

1

“Um homem pode mudar de mulher, de partido político ou de religião, mas não de time de futebol”: Para começar, essa frase é tão machista que sequer considera que uma mulher também pode ser uma torcedora apaixonada. Depois, coloca o time de futebol - que é um negócio (sabemos disso, certo?) - acima de mulheres e de relações afetivas. Por fim, ignora que homens torcedores de futebol podem relacionar-se com outros homens.

2

Para participar do Peladão (o maior campeonato de futebol amador do mundo, que acontece anualmente em Manaus), os times inscritos precisam ter uma “musa”. Caso contrário, a equipe é eliminada. A musa do time também concorre a um concurso de beleza e pode resgatar a equipe eliminada, se ela tiver ficado no meio do caminho.

3

Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam que somos a maioria da população brasileira (51,4%), estudamos mais do que os homens, conquistamos mais espaço no mercado de trabalho. Mesmo assim, ainda não somos alvo dos clubes de futebol. Além de sermos excluídas de todo o sistema do futebol, também somos ignoradas como torcedoras.

4

Seja mulher e diga numa roda de homens que você também adora futebol. Eles vão fazer todo o tipo de teste para tentar descreditá-la. Se você elogiar a beleza de um jogador, vão te crucificar. Afinal de contas, a única coisa que sabemos é avaliar se as pernas do fulano são bonitas ou não! (contém ironia)

5

Se você for jornalista e quiser trabalhar com futebol, tenha certeza que vai precisar saber muito mais que seus colegas para conseguir uma vaga na cota de mulheres da editoria. Ah! Também vão falar que você tem um caso com o chefe.

6

Uma pesquisa do Olga Esporte Clube, realizada no início de 2016, mostrou que 25% das meninas e mulheres entrevistadas já sofreram preconceito ao praticar algum esporte. Esse dado aumenta para 29% nas periferias.

7

Bem diferente das equipes masculinas, as jogadoras de futebol precisam dividir a dedicação ao time com outro trabalho.

8

Meninas recebem panelas de brinquedo e bonecas quando crianças. Meninos ganham bolas de futebol. Desde cedo, os adultos nos mostram onde deveria ser nosso lugar: cuidando da casa, do marido e dos filhos.

9

O futebol é um esporte pensado por e para homens, seja no gramado ou nas arquibancadas:

  • As pesquisas que mapeiam o perfil das torcedoras são ínfimos e antigos. Segundo pesquisa de 2015, 17% dos sócio-torcedores são mulheres no Brasil; em Barcelona, esse número sobe para 26%.

  • Os clubes do Brasil aproveitam pouco o potencial do nosso público. Isso porque eles são comandados por homens conservadores e machistas. Se vemos poucas atletas no mercado, nos cargos de direção a situação só piora.

  • A participação feminina no futebol incomodou muito a tradicional família brasileira no início do século XX. Na década de 40, foi criado um decreto-lei do Estado Novo, proibindo a “prática de esportes incompatíveis com a natureza feminina”, como futebol, lutas, pólo e halterofilismo. A lei teve fim em 1979.

  • A primeira seleção brasileira de futebol feminino foi “convocada” em 1988 pela CBF. A equipe - formada pelas atletas do Radar - venceu a competição “Women’s Cup of Spain” após derrotar Portugal, França e Espanha.

  • Marta é a principal jogadora do futebol brasileiro. Ela foi eleita cinco vezes como melhor jogadora do mundo, é a maior goleadora das Copas do Mundo de Futebol Feminino (15 gols) e é a maior goleadora com a camisa da seleção brasileira (98 gols). Essa marca supera a de Pelé, com 95 gols. Ela também é a maior goleadora em Copas.

Para assistir

1

O documentário francês “A Vez das Mulheres, de Hélène Harder, é inspirado na organização “Ladie’s Turn”, que busca a promoção do futebol feminino em Senegal. 

2

O documentário “A falta de visibilidade e o preconceito com mulheres que praticam futebol no Brasil” reúne falas importantes de jogadoras amadoras e profissionais, como Marta.

“Onde não puderes amar não te demores”. Ou seja, enquanto eu ouvir em casa que o futebol feminino é chato não piso mais em um estádio onde homens estejam jogando.


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Babi Nascimento tem sotaque amazonense, mora em São Paulo e celebra (profissionalmente) o amor em casamentos pelo Brasil. É feminista, foi criada por mulheres que fizeram história na família e adora a energia das cachoeiras e dos abraços apertados.