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Você e a comida #3: muito mais do que o que você coloca na boca

Esse é o terceiro texto da série Você e a Comida. Acompanhe!


Já expliquei como cada papel que desempenho na vida influencia na minha relação com a comida – e como a comida influencia nas relações que travo com as pessoas. Nesse texto resolvi compartilhar com você algumas práticas que me ajudaram a entender melhor minha relação com a comida e a amplitude que ela passou a ter na minha vida.

Fazer a própria comida

Por n motivos, há 10 anos eu (quase) só como em casa. Passei anos comendo de 12 em 12 horas (isto é, só quando estava em casa), comendo um sopão que eu fazia e há dois anos passei a comer de três em três horas após a nutricionista indicar essa dieta. Isto é, eu comecei a trazer pro trabalho tudo que comia.

Nestes 10 anos minha comida foi se aprimorando e, por alguma razão que eu não sabia, eu gostava muito mais da minha comida do que a comida de fora. Não estou negando que a comida de fora seja boa, mas descobri recentemente porque gosto tanto da minha comida: é a energia que eu gasto no preparo dela que volta pra mim. Sabe a propaganda do Sazon, que o tempero é 'amor'? É a mesma coisa!

Toda vez que eu preparo uma comida incrível – como um estrogonofe vegano, feito com leite de amendoim que eu passei algumas horas descascando - eu sempre preciso arranjar alguém que eu gosto muito para compartilhar a refeição. Para mim é o maior carinho que pode existir no mundo: estou dando para essa pessoa minha energia!

Hoje sou a rainha dos potes. Carrego 100% da minha comida pro trabalho. Ingiro fria, mas como tem sido bom comer minha própria comida! Quando preciso comprar na rua porque não consegui traze-la, eu sinto que a energia que ela me proporciona não é igual. Ela passa a ser somente comida (e não energia).

Essa relação de preparo (chego todo dia e preparo a comida do dia seguinte, no fim de semana reservo um tempo pra preparar a comida da semana) tem sido uma rotina pesada. Demanda tempo, mas é um tempo gostoso de se passar. Como as atividades às vezes são repetitivas, como tirar casca de todos os amendoins, isso leva você a prestar atenção no que está fazendo e refletir sobre tudo que está acontecendo. É quase uma meditação.

O que estou percebendo é que não quero adaptar minha alimentação à minha rotina, e sim o contrário.

Se o que eu sinto que é certo fazer não está cabendo no meu dia a dia, então tenho que mudar o meu dia a dia. Eis um primeiro ponto que aponta que a comida é tão importante que já está afetando minhas decisões e futuro.

Desperdício / zero waste (lixo zero)

É muito muito legal conseguir aproveitar absolutamente tudo dos alimentos. A maneira de tratar com esmero o alimento me faz sentir no caminho certo, me faz bem e parece que eu cumpri o meu papel de gestora dos bens que me são fornecidos (não dá pra fugir, sou administradora por essência, eu faço gestão dos recursos da geladeira e pronto ;)).

Quando eu era criança, na época que a gente comia polenguinho no Natal e máquina de lavar roupa era item de luxo, minha mãe fazia suco ralando cenoura e torcendo num pano de prato.

Quando jogava fora o resíduo, minha mãe dizia: se nós estivéssemos na guerra, isso não seria lixo, isso seria comida.

Acho que ela plantou essa sementinha em mim desde cedo. Hoje, por exemplo, faço leite de amendoim (maravilhoso por sinal), e com o resíduo dá pra fazer farofa, bolo, biscoitinho.... Reciclo meu lixo fazendo compostagem com as minhas bactérias e minhocas - amo! Foi dando bom dia pra elas todo dia que eu descobri que precisava de um bichinho de estimação ;) - e a terra que elas produzem é INCRÍVEL, tudo nasce nessa terra. Então é como se fosse um ciclo, dá pra participar dele todo.

Vegetarianismo e afins

Eu era mega carnivora e ano passada eu ouvi uma frase:

Você não deve se alimentar de nada que tenha dado a vida por você

Isso mudou minha forma de ver o mundo e estou vegetariana desde então. Estou começando, aos poucos, a evitar leite e ovos também.

O leite pelo famoso motivo de que o ser humano é o único ser vivo que continua tomando leite após os seis meses de idade, e que não temos enzimas o suficiente para digeri-lo. Além disso, o leite não ajuda no cálcio, isso é só um mito da indústria.

O ovo é pra ele não virar bengala de “proteína” - querendo ou não as galinhas são maltratadas pra dar ovo – e porque o ovo nada mais é do que – preparem-se! - a menstruação da galinha.

[Não estou querendo “evangelizar” ninguém, estou só dividindo os MEUS processos]

E então cheguei a outra coisa interessantíssima do vegetarianismo: como a proteína não é tão fácil de adquirir, eu passei a dar outro valor pra comida. Ela não é mais descartável e “abundante”. Se eu coloco gergelim em uma salada e cai um grão pra fora do prato, eu pego esse grãozinho e como muito feliz, pois sei que a minha energia está ali.

Outra frase que ouvi foi “você não deveria consumir um alimento que você gasta mais energia do que ele te dá”. Se você demora 12 a 48 horas pra digerir uma carne (e está com fome antes disso) é porque tem alguma coisa errada nessa equação.

Produzir própria comida e trabalhar na terra

Toda essa mudança me fez passar a ter menos tempo, menos qualidade de vida e um novo questionamento.

Meu trabalho não gera resultados (trabalho em uma empresa há alguns anos, já fiz e desfiz algumas atividades porque a vontade “dos acionistas” mudava de acordo com o bolso deles). E quando trabalho na terra, o resultado é visível e instantâneo.

Consigo ver o que eu fiz (curvas de nível, descompactar solo, colheita, capinamento), e é um trabalho físico (nosso corpo foi feito pra se movimentar). Ficar sentada em um ambiente sem janelas com luzes brancas na frente de um computador o dia inteiro não é natural. Então descobri que estou super a fim de jogar tudo pro alto e “ir criar galinha na roça”. Mas jogar o que pro alto?

[começa, então, o fluxo de pensamento]

Eu não tenho nada! Não consigo nem trocar de carro, quanto mais juntar um milhão de reais pra comprar um apartamento pequeno!

Na roça, se eu plantar, vou colher. Se eu colher, posso fazer compotas. E compotas eu posso vender, e aí eu consigo construir alguma coisa. Quem sabe começo alugando um quarto e depois vira um hotel? Quem sabe eu consigo desenvolver o agroturismo da região? Posso fazer o mínimo (colher hortelã) e posso impactar toda uma região. Não importa a dimensão, o que é importa é que eu estou construindo algo útil.

[fim do fluxo de pensamento]

Aí passei a ter contato com a agroecologia (please, tendo 15 minutos não deixe de ver o vídeo sobre a vida sintrópica, que diz nós somos seres da natureza e devemos viver integrados a ela.) Resolvi começar pelo início, como dizia nossa amiga Noviça Rebelde, e comecei na minha varanda: estou encantada com a beterraba e o rabanete que eu plantei. Foi UM rabanete, que eu por acaso comi ontem, mas como estou cuidando dele há pelo menos 2 meses, olha só, eu como ele com outra energia, outro carinho. Não é um alimento descartável, é um alimento muito especial que eu me lembrei de regar todo dia! Essa relação de energia com a comida tem me feito muito bem.

As pessoas às vezes dizem que não têm habilidade com as plantas. Minha experiência diz que não existe isso. Na verdade, cada um que tem começar a mexer com a planta e a entender, começar a “ouvir”. É claro que se aprende errando (já matei muita hortelã nessa vida), mas o contato com a terra é muito, muito bom.

Aprendizados da terra: respeitar o tempo e entender que ele é importante, seu amigo. “Não brigue com o tempo, que ele não briga com você”. Entender, na prática, os ciclos, o nascimento e a morte, conseguir aprender as qualidades da terra como elemento de energia: centrada, forte, cheia de vida, equilibrada, que dá sustentação. No trabalho na terra se faz uso da força e delicadeza ao mesmo tempo e esse tempo despendido é sempre de muita reflexão.

Alimentação viva/crudorismo

A alimentação viva - que por enquanto só sigo coisas como leites vegetais, brotos e grãos germinados - me ensinou algumas coisas: ter contato físico com o alimento (pegar no grão, escolher o grão, espremer o suco com a mão) e como isso já faz parte da troca de energia; que é possível 'ouvir' o que o corpo precisa em determinado momento: se estou com uma vontade doida de comer maçã é porque meu corpo precisa do que a maçã pode dar; e valorar o ingrediente local: se ele está próximo de mim é porque eu preciso mais dele do que o importado.

Eu fui 100% crudívora por exatas 6 semanas. O que foi muito bom: se antes já passava o dia inteiro pensando em comida (ou na comida que eu queria, mas que estava me restringindo para não engordar; ou na comida em excesso que eu havia comido), no crudivorismo isso se oficializou.

Vivi para a comida, porque dá um trabalho. E o mais incrível: pela primeira vez na vida comi tudo o que eu queria (dentro do crudivorismo) sem peso na consciência NENHUM! To com vontade de encher a cara de caqui? Bora lá passar mal depois de comer 6 caquis (yes, isso aconteceu). Abacate? Vai um inteiro, por favor. Azeite, castanha de caju, mingau de aveia com cacau cru, brigadeiro de tâmara com cacau cru. To com vontade de comer o dia inteiro? Bora comer o dia inteiro. Foi in-crí-vel a sensação de liberdade.

Já saí do crudivorismo, mas essas foram as coisas que aprendi:

  • ouvir o corpo em relação ao que se precisa comer
  • precisamos de gordura e não de açúcar
  • comi muito azeite, não de gula, mas porque sentia que era isso que precisava
  • a restrição alimentar foi muito boa para que eu deixasse os vícios de lado e percebesse minhas necessidades

Na próxima semana vou falar um pouco de como todas essas descobertas influenciaram outras áreas da minha vida e me ajudaram a olhar não só para a alimentação de uma forma diferente da que fui programada.


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Lorena Jacobson Berzins, diferente de todo mundo desde sempre (e se descobrindo cada vez mais igual a todo mundo), quer mais do que nunca ter um trabalho com propósito (in love com a atuação de professora universitária), sabe que não pode mudar o mundo mas fica muito feliz quando consegue ajudar uma velhinha a carregar as compras.  Cheia de problemas internos e buscando sempre equilíbrio. Se virando nos 33, mas achando que está tudo dando certo.