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A “nega metida”: a construção de lugares e não lugares para as mulheres negras

Nessas incansáveis buscas por leituras e informações me deparei com uma entrevista da escritora Conceição Evaristo em que ela falava sobre as suas obras refletirem um momento do pós-abolição, de dor; que gostaria de escrever sobre essa geração de pessoas afro-brasileiras que não passou por dificuldades ou por certas dores. Eu ouvi essas palavras e guardei no meu pensamento.

A grande questão é que por mais que nossas mães, pais e familiares nos poupem das mazelas do mundo, invistam em educação e etc., vem a sociedade brasileira - racista, patriarcal e classista - com os seus lugares e não lugares para essa geração de negros e negras. Me refiro especificamente de como o mito da democracia racial age na vida das mulheres negras com o fenômeno da “nega metida”. Para além disso, esse sistema possui a estratégia de isolar essas mulheres e fazer com que elas se sintam culpadas.

A mídia retrata pessoas negras como escravos, como pessoas que sofrem, ou como aquele negro estereotipado na imagem do jogador de futebol. Quando esses elementos caricatos não estão presentes parece que o negro está fora do lugar que foi destinado e criado para ele.

Quem tem medo das mulheres negras?

Ao não estar no lugar que socialmente é destinado para as mulheres negras, nós despertamos muitos questionamentos. Um deles é a respeito da formação acadêmica. Eu geralmente faço um exercício deixando a pessoa adivinhar e é muito interessante observar o desconforto e as palavras que vão sendo proferidas.

Já fui chamada de muitas coisas: “preta rica”, “socialista da Carmem Steffens”, “burguesa” e etc. Quando entrei para os movimentos sociais teve gente que se atreveu a me chamar de “nêga”, dizem que é uma forma carinhosa de lidar, mas a gente sabe muito bem o que isso significa: se trata dos lugares e não lugares. Lélia Gonzalez nos lembra muito bem que “negro tem que ter nome e sobrenome, senão os brancos arranjam um apelido...ao gosto deles”.

Lourenço Cardoso em seu trabalho de doutorado intitulado O branco ante a rebeldia do desejo: um estudo sobre a branquitude no Brasil diz:

“O branco, em que a identidade racial significa virtude, subordinado ao negro, em que a identidade racial significa malogro, evidencia sua decadência. Ele torna-se o branco que decaiu da própria branquitude, torna-se fracassado. O fato torna-o menos branco, porque desvia do significado de que ser branco é ser virtuoso”

Um ponto importante é sobre a diferença de humildade e subserviência, ao se distanciar do que a sociedade projeta para uma mulher negra, a mesma não é humilde, pelo contrário é metida. Ao investir em nossos projetos pessoais, fazer cursos de idiomas, viagens, sermos reservadas, viver a nossa vida, parece que estamos sendo egoístas, exigem da gente humildade.

O isolamento da mulher negra como estratégia do sistema racista-patriarcal

Lembro de uma frase que a educadora Doutora Azoilda Loretto falou uma vez em um encontro, no qual eu tive a sorte de estar presente: “o maior ato revolucionário que uma mulher negra pode ter é se cuidar”. O que ela quis dizer com isso foi pra gente ficar viva, se amar e isso é o que de mais lindo podemos fazer pela gente.

Existe um sistema pronto para desumanizar as mulheres negras e isso é atentar contra a nossa dignidade, retirar nossa condição humana. Mulher negra pode não querer pensar nas tristezas do mundo? Pode sim. Pode ir para Disney? Com certeza. Pode ir comer no japonês? Óbvio. E gostar de vida boa? Gente, quem não gosta? E ser uma pessoa introspectiva, séria? Pode muito. Falar diversos idiomas? Adoro. Pode ser Doutora? Sim. Pode ser bailarina clássica? Obviamente. Pode ter cabelo crespo e ser advogada? Sim.

Por fim, espero que esse texto sirva como acalanto e ao mesmo tempo um alerta para aqueles que tentam deslegitimar as mulheres negras todos os dias, enfatizando que não existe um padrão de mulher, muito menos de mulheres negras, somos muitas e somos diversas. E realmente não estamos interessadas em agradar ninguém e nem a se enquadrar nos rótulos que reservam para nós.


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Ellen Mendonça graduou-se em Direito com ênfase em Direito Público pela PUC-Rio, professora, pesquisadora, feminista negra, aprendeu com sua tia-avó que a luta nunca se aposenta, possui uma gargalhada reconhecível, uma pessoa para poucos que "têm amores e amigos de fato, nos lugares onde eu chego".