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Um leão por dia: como vivo transtornos obsessivos no meu corpo

Todas as mulheres ao meu redor são lutadoras. Lutam por sobrevivência, respeito, liberdade ou felicidade - pra si e pros outros. Nascemos e morremos em meio à guerra que é a existência, com o agravante, pra nós, de essa existência se dar em uma sociedade cruelmente patriarcal. Eu luto por igualdade de gêneros. Luto pra me soltar das amarras de uma educação controladora, machista, conservadora e julgadora. E, desde a minha infância, luto contra transtornos da psique, alguns dos meus piores inimigos. É sobre eles que quero falar. Porque sei que essa briga não é exclusividade minha.

Aos 13 anos, fui diagnosticada com Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC), uma doença considerada clinicamente como crônica.

Vai saber. Só sei que o transtorno mental, caracterizado pela presença de obsessões, compulsões ou dos dois, pode chegar a níveis seríssimos e comprometer bastante a vida de quem tem que lidar com ele, sejam os portadores ou as pessoas próximas. A doença, com risco de desenvolvimento durante a vida de 3,1% nas mulheres e 2,0% nos homens, foi considerada a quinta causa de incapacitação em mulheres dos 15 aos 44 anos nos países em desenvolvimento. Só no Brasil, se estima que existam de 3 à 4 milhões de indivíduos com TOC.

Eu passei por vários estágios, dos dolorosos aos mais preocupantes: meu principal sintoma foi a mania de limpeza pessoal, que me levou a ficar, no episódio mais drástico, quase 20 horas seguidas lavando as mãos (o que terminou em desmaio por inanição).

Quase perdi a vida nessa época, mal conseguia ir à escola e me relacionava com poucas pessoas além da minha mãe, que esteve do meu lado durante todo o processo. Até os 16 anos eu estive bastante doente. Aos poucos meus sintomas foram controlados, tive alta médica e corri pra aproveitar o resto de adolescência que tinha sobrado. Mas a doença é ligeira e também correu atrás de mim.

No início da fase adulta, me deparei com um transtorno alimentar – esse, com incidência muito maior nas mulheres. A anorexia, distúrbio alimentar que leva o portador à obsessão pelo seu peso e por aquilo que come, 20 vezes mais frequentes em mulheres do que em homens, teve seu ápice entre os meus 18 e 20 anos, quando se manifestou ativamente. É uma doença comumente associada a medo, culpa e problemas de auto imagem. Suas consequências são bastante cruéis: cheguei a pesar 40 quilos (distribuídos por 1,62 de altura), parei de menstruar, tive quedas de temperatura corporal e cabelos. Apesar da severidade essa batalha deu pra vencer sozinha, por desejo de sobrevivência mesmo.

Eu lido com a obsessão e a compulsão diariamente até hoje. Meu sintoma mais frequente é a chamada dermatilomania, uma compulsão causada pela vontade de causar ou piorar problemas na própria pele.

No meu caso, procuro as ditas “imperfeições” de pele , tentando retirar o que me incomoda de um jeito tão agressivo que causo feridas sérias no rosto e no corpo. Um artigo publicado pelo IBRAPE fala sobre o percentual alto da doença em mulheres: “A maior prevalência no sexo feminino pode estar relacionada com a preocupação estética, níveis hormonais e fatores socioculturais”.

O corpo feminino é atacado de várias maneiras, esse é só um ponto de vista sobre uma delas.

Não dá pra saber ao certo o que leva esses transtornos a se manifestarem nem por quê são mais incidentes em mulheres; a medicina acredita que existe uma soma de fatores genéticos e ambientais. Mas uma coisa é certa: precisamos falar sobre isso.

Acredito que expor o que dói nas nossas realidades fortalece quem vive realidades semelhantes. Nos ajuda, nos acolhe, e dá conta de fazer - muitas vezes - o que a medicina sozinha não dá. Gosto muito de um trecho da música Dragão, da Karina Buhr, que canta assim: “Por fim, a tristeza é amiga da onça. Ensina a enfrentar Leões”.

Vamos juntas.


Flora Miguel é jornalista, assessora de comunicação e imprensa e produtora cultural com foco na música independente nacional. Junto ao coletivo SÊLA, promove ações de visibilidade do papel da mulher na música.