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Do outro lado da tela (sempre) tem uma pessoa

Para que uma comunicação funcione é preciso ter uma pessoa que fala e outra que escuta. Aprendi isso na escola. A mensagem tem que ser clara e não deixar ruídos entre o que gostaria de ser dito e o que é entendido pelo outro. Essa segunda parte muita gente entende com facilidade, afinal ninguém quer ser mal interpretado. Mas a primeira parece que foi meio esquecida.

Não, ninguém esqueceu que está falando com alguém. Apenas esquecemos que esse alguém é uma pessoa como a gente. Principalmente na internet. Tem você. Tem a tela, o teclado, os cabos, a internet. E tem outra pessoa. Essa pessoa existe no mundo real, não é apenas um conjunto de dados criptografados.

Ela talvez tenha acordado mais cedo do que gostaria porque o filho ficou doente. E aí não tinha leite. Talvez nem tivesse grana pra sair e comprar leite, mas mesmo que tivesse, ela não conseguiria ir porque quando se deu conta já tinha que correr para o trabalho.

Talvez essa pessoa tenha perdido o amor da vida há 10 minutos ou 10 anos e isso ainda doa como se fizesse 1 segundo apenas.

Talvez essa pessoa esteja lutando contra uma doença sozinha, sem querer preocupar ninguém. Tomando remédios fortes e segurando sozinha a barra das reações adversas.

Talvez essa pessoa esteja feliz, sorrindo, vendo graça em tudo.

Talvez ela esteja meio bêbada às 10h da manhã porque é a única maneira que consegue seguir em frente. Talvez esteja anestesiada por outras substâncias, inclusive algumas que o médico passou.

Talvez essa pessoa não consiga entender o que lê. E não é culpa dela. Talvez seja a dislexia não diagnosticada. Talvez seja a educação excludente. Talvez ela apenas não consiga.

Pode ser que essa pessoa tenha acordado fraca, chorando depois de um sonho ruim, esteja colocando o pé no caminho escuro da depressão e sentindo-se abraçada por ele. Talvez ela não tenha forças para sair e a primeira luz que buscou foi a do computador. Mas e aí?

Aí ela encontra outra pessoa online. Uma pessoa que não lembra que ali do outro lado tem alguém. Alguém que sente, vive e respira. E por não se dar conta disso, não por maldade, despeja opiniões não solicitadas, duras, cortantes, asfixiantes. Talvez ela te conheça e apenas desejasse que você dissesse que vai ficar tudo bem. Talvez ela não te conheça e esperava que o mundo desse um sinal de que ainda tem jeito, ainda dá tempo de melhorar.

Não é uma questão de não dizer o que precisa ser dito. É questão de como dizemos. Não precisa ter ódio para ser forte. Pode ter ódio quando precisa ter ódio. Mas é sempre? Em todos os momentos? A cada respiração? Direcionado a qualquer um que não seja você ou os seus? Será que é esse o caminho que você escolheria se pensasse sobre ele?

A gente esquece. Esquece que olhando no olho não falaríamos daquele jeito. Que frente a frente as coisas ganham outro tom, a gente se vê naquele outro humano, pense ele o que pensar.

A gente vê as rugas, as marcas, a roupa, a pequena mancha no cantinho da barra da camiseta. A gente lê uma história com tudo aquilo: o olhar, as costas curvadas, o canto da boa, o tom da voz, o jeito de segurar a mochila. A gente vê e entende. Sem a tela, a gente entende.

Então a gente precisa tirar a tela da nossa frente, mesmo quando ela está lá. A gente precisa lembrar. É urgente lembrar. É tão necessário quanto escrever todas essas letras seguidas umas das outras. É tão imprescindível quanto dizer o que se pensa, o que se sente, como se enxerga o futuro. Porque tudo depende das pessoas. A gente se move por entre elas, ao lado delas, com a ajuda delas ou apesar delas. Mas elas estão sempre ali.

Do outro lado da tela (sempre) tem uma pessoa. E se a gente não gostaria de ser a pessoa que está do outro lado da nossa tela é hora de mudar.


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Carol Patrocinio é jornalista e divide seu tempo entre escrever para diversas publicações sobre assuntos relacionados ao mundo feminino e ao feminismo, como o Ondda, seu canal no Medium, vídeos no Youtube e consultorias para negócios que querem falar com as mulheres.