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Como é viver com uma doença não contagiosa, mas que grita aos olhos dos outros?

Meu nome é Tauani, mas gosto que me chamem de Tau. Tenho uma doença genética - portanto não contagiosa - bem rara, chamada Epidermólise Bolhosa (você pode conhecer melhor sobre a doença aqui).

Mais facilmente chamada de EB, a doença que vem me acompanhando desde o dia em que nasci ainda não tem cura. Basicamente, é um defeito genético na produção de colágeno, o que torna minha pele muito sensível e frágil, aparecendo alguns machucados e bolhas pelo corpo.

Além disso, o tipo de EB que eu tenho é caracterizado pela junção dos dedos, o que faz com que a minha mão seja bem diferente. Já quando pequena foram aparecendo machucados e fissuras entre os dedos, e a tendência da doença é que os dedos cicatrizem unindo-se uns aos outros - e mesmo eu já tendo passado por várias cirurgias para separá-los, eles voltam a juntar. Então, por isso, pode parecer que eu não tenho os dedos das mãos, mas na verdade eles estão todos aqui, juntinhos.

Aí apareceu o maior desafio da EB na minha vida: quando os dedos juntaram e minhas mãos começaram a ficar com esse aspecto diferente. Óbvio que houve uma consequência funcional, já que preciso pedir ajuda para fazer certas coisas. Mas me adaptei, aprendi a escrever, comer e segurar as coisas com as duas mãos juntas, fui me virando. Até aí tudo bem.

O que não tava tudo bem era a relação com os outros. Porque os demais machucados nos meus braços e pernas eu escondia debaixo da roupa, mas as minhas mãos uma hora se faziam necessárias e eu tinha que tirá-las do bolso do casaco, ficando à mostra.

E isso atraía - e ainda atrai - inúmeros olhares dos mais diferentes tipos: os olhares de curiosidade, os de pena, os de espanto, os de medo, os de nojo.

No começo meus pais respondiam por mim, explicavam pra essas pessoas que o que eu tenho não é queimadura e muito menos falta de cuidado, e sim que eu já tinha nascido desse jeito. Mas a verdade é que eu não nasci assim.

A EB nasceu comigo, mas eu passei a estar com ela muito mais tarde, isto é, parei de negar e aceitei a situação toda muito depois.

Enfim, uma hora comecei a responder por mim mesma. Morria de vergonha mas tentava explicar “o que é isso nas minhas mãos”. Quando pequena era mais tímida, só falava sobre EB pra quem me perguntava ou quando a pessoa já era mais íntima, tipo amiga de verdade.

Mas aí chegou uma fase crítica da vida, a adolescência. Minhas amigas arranjando namoradinhos, todas vivendo um romance juvenil, e eu nada. Então entrei numa crise.

Explico: desde pequena vi vários filmes de princesas, aprendi e brincava com essas histórias tão fáceis de se gostar. E “A Bela e a Fera” sempre foi o meu filme favorito. Afinal, a Bela se apaixonou pela Fera mesmo ela sendo feia e amedrontadora e, melhor ainda, no final do filme, com todo aquele amor mágico, a Fera ficou linda, curada da maldição e eles foram felizes para sempre. Esse era o sonho da minha vida, encontrar meu príncipe que me aceitasse do jeito que eu sou, para me livrar desse meu destino de tragédia infindável.

Só que a realidade bateu à minha porta, o mundo real se mostrou não ser um conto de fadas. Não tinha nenhum príncipe encantado, nem ao menos um namoradinho na época de escola.

Isso foi devastador, passei muito tempo da minha vida com pena de mim mesma, desejando ter nascido sem EB e poder mudar as minhas mãos, como se isso fosse resolver a coisa toda.

O tempo foi passando, chegou a crise dos 20. Resolvi mudar de curso, vi que Direito não tem nada a ver comigo. Voltei a fazer aula de desenho. Retomei o acompanhamento com psicólogo. Decidi que queria aprender a dirigir e tirei minha carteira de motorista. Viajei sozinha para fora do país pra viver uma história de amor internacional (e olha, até que rendeu).

Fiz cursinho e passei no vestibular de novo, agora estudo Psicologia. Fundei, com a minha mãe e outros familiares de crianças com EB, a Appapeb - Associação paranaense de pais, amigos e pessoas com epidermólise bolhosa (pra quem quiser conhecer a associação, essa é a página no Facebook).

Criamos a associação com o objetivo de prestar auxílio às pessoas com EB e seus familiares; seja fazendo doação de curativos, levando informação sobre a doença nas visitas aos bebês que nascem com EB, conversando, trocando informações e experiências com as outras famílias, e divulgando cada vez mais a EB para acabar com o desconhecimento e preconceito.

Diante de tantas novidades na minha vida, de tantos momentos que aconteceram com o meu esforço, finalmente percebi uma coisa que me fez muito bem: sou uma mulher independente, dona de mim, capaz de fazer muitas coisas e de viver momentos completos e felizes sem precisar do ‘príncipe encantado’.

Quando tomei conta disso, disse a mim mesma que era hora de me expor, que era a hora de falar sobre EB, de me aceitar e me amar do jeito que eu sou, de valorizar as coisas boas que faço e aprender com os meus erros. Aí resolvi criar um blog falando dos meus sentimentos, de assuntos aleatórios e também explicando sobre a EB. Pela primeira vez na minha vida postei uma foto que mostrasse as minhas mãos e os meus braços. E o sentimento foi libertador, foi de “quero mais”!

Como as coisas ficaram mais fáceis e prazerosas nesse momento em que comecei a me amar, isso é indescritível. Me veio essa vontade de gritar, de dar voz aos meus sentimentos e mostrar pro mundo que todo mundo tem algum ‘problema’. Ninguém é igual a ninguém e não tem mal nenhum em ser diferente ou não se encaixar nos padrões sociais.

Então, que as pessoas me vejam como eu sou, que aceitem que o mundo é feito de imperfeições. Talvez assim um dia possamos ver que tais imperfeições tornam o mundo mais humano e menos chato. Elas ensinam a gente a ver a vida de outra forma, a abrir os olhos pra várias coisas. Ser diferente não precisa ser um peso pra ninguém, podemos aprender e ensinar muito com as nossas particularidades.


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Tauani Vieira é estudante de psicologia na UFPR, diretora de relações públicas da Appapeb, nasceu com Epidermólise Bolhosa, é desenhista e sonhadora nas horas vagas.