`

O espelho de uma mulher negra

Eu levei mais de 20 anos para me descobrir negra. Mas não era evidente? Será que eu não tinha espelho em casa? Eu tinha, mas ele nunca foi muito preciso no que me dizia. Ou eu nunca entendia o que ele dizia.

Foi com a minha mãe que aprendi que para ir a uma padaria, a um supermercado ou ao shopping eu sempre deveria estar melhor vestida do que uma branca em seu pior dia. Hoje sei que é uma ilusão pensar que apenas uma boa roupa vai evitar que o segurança olhe para mim.

Meu cabelo armado-cacheado-graciosamente-embolado nunca foi um problema para mim. Mas os outros viam nele um problema. Minhas tias se empolgavam alisando meu cabelo, como se me fizessem um grande favor sumindo com meus cachos. Quando eu aparecia com cabelo liso, todos elogiavam. Mas eu me sentia péssima. Eu me sentia uma fraude. Naqueles dias, nem o espelho queria papo comigo.

Quando uma mulher negra se olha no espelho, nunca vê apenas seu rosto, seu cabelo, seu corpo. Ela vê também que não se encaixa nos padrões de beleza. Ela não está no primeiro plano de revistas, nem nas propagandas. Não é protagonista de contos de fadas ou novelas. E quando surge alguma mulher negra rompendo alguma dessas barreiras, é apenas uma mulher negra rompendo barreiras, estejam satisfeitas com o número, obrigada, de nada. Desse jeito fica até difícil a mulher negra ser dona do próprio espelho. Chegar ao ponto de se amar então, nossa, o caminho pode ser longo, especialmente quando você é agredida cotidianamente com palavras que rasgam, mãos que socam, pés que chutam e olhares que perfuram.

Minha mãe sofreu agressões racistas inúmeras vezes. Ela enfrentou cada uma delas com bravura, incorporando a melhor versão do que muita gente ainda costuma ler como “negra insolente”, “negra esquentada”, “negra revoltada”. Recentemente, relembrando alguns desses momentos tristes com ela, descobri que para minha mãe ainda é difícil lidar com categorias como “morena” e “negra”. Identidade é uma coisa nebulosa mesmo. Talvez eu ainda estivesse perdida nessa neblina se não tivesse sido a primeira da família a entrar numa universidade pública e depois a primeira a entrar num mestrado. Na universidade meus olhos não apenas se abriram: eles se arregalaram. E não precisei de teoria não. Olhei pra um lado, olhei pro outro e fiz as perguntas que ninguém ouviu: “onde estão as outras negras ? Nós somos só essas por aqui mesmo? Por que?”. Corri para o espelho e entendi. Eu finalmente entendi.

Tire os fones dos ouvidos. Abra bem os olhos. A mulher negra está em todo lugar, mas não é vista em lugar algum. Chega de invisibilidade. Chega de silenciamento. A mulher negra enfrenta racismo, machismo e pobreza, pouca qualificação e baixos salários, perde seus companheiros e seus filhos pra violência, até que se torna ela mesma parte das estatísticas sobre violência no Brasil. Enquanto isso, algumas almofadas ficam cada vez mais fofas, tornando ainda mais confortável a posição de cada privilegiado. Foi a sua empregada negra que afofou a sua almofada hoje? O que foi? Estou soando panfletária demais pra você?

Eu poderia levantar mil bandeiras e outras tantas além dessas. Mas não sou uma militante perfeita. Nem sei se sou mesmo militante ou se só estou tentando sobreviver dignamente. Tem horas que me sinto meio hipócrita, como quando estou escrevendo minha dissertação sobre representações femininas no teatro de um dramaturgo português do século XVI e percebo que só trabalho com uma personagem negra: uma escrava chamada Luzia. A Luzia é maltratada por sua senhora por inúmeros motivos, mas especialmente por ser desastrada. Num momento de desabafo, essa personagem queixa-se porque a sua senhora só se refere a ela por meio da expressão “cadela”, quando tudo o que ela mais deseja é ser chamada pelo próprio nome. Quando penso em representações femininas de mulheres negras, desumanizadas ou erotizadas, sinto um aperto no peito e nem procuro meu olhar do outro lado do espelho. Quando penso nas mulheres negras de nossa história, como Dandara e tantas outras que não chamamos pelo nome, sinto que como historiadora estou fazendo pouco. Mas ainda tenho tempo, não tenho?

É por isso que meu feriado preferido é o dia da Consciência Negra. Pra começar, a data foi escolhida em referência à morte de Zumbi, uma figura que me faz pensar em resistência e luta. Em segundo lugar, é o Natal dos fãs de textão nas redes sociais! É um dia de reflexão e questionamento. Vou pegar minha faixa de Miss Textão e jogar beijos pro público, especialmente pra quem resolver plantar e colher abobrinha dizendo coisas como “ cadê a consciência humana?”, “racismo reverso”, “o preconceito começa quando o negro…”. Não, apenas não.

Por fim, é o dia em que olho no espelho e não vejo só meu rosto: naquele reflexo vejo o rosto da minha mãe, os rostos das minhas tias, de todas as mulheres negras (não que o meu espelho seja enoorme, mas você entendeu).

É o dia em que não ficamos invisíveis de forma alguma.


Texto publicado originalmente no Medium da autora.


Vanessa Bittencourt tem 27 anos. É historiadora e feminista. Escreve no Medium.

 

Vanessa Bittencourt

Vanessa Bittencourt, 27 anos. Historiadora e feminista.