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Dois cativeiros de um mesmo algoz

Uns dias atrás reclamei de assédio na rua e disse que estava cansada, cansada de ouvir bobagem, cansada o suficiente pra não conseguir nem responder naquele dia. Fiz um post, outras mulheres se solidarizaram, um ou outro homem tentou justificar como elogio, me senti menos sozinha, deu alívio, vida segue. No dia seguinte uma amiga me chama no chat e começa a conversar comigo.

Ela explica que nunca foi chamada de gostosa na rua. Que nenhum homem jamais gritou elogios duvidosos pra ela. E que ela gostaria que isso acontecesse, de certa forma. Ela, tristemente, explica: “É porque sou negra, sou gorda”.

Meu alívio congelou no peito. Ela contou que nunca ouve elogios. Que quando sai na rua é vítima de gritos, sim, mas de xingamentos. A chamam de macaca, de gorda, de feia, de canhão. Que no carnaval, quando acontece o assédio de fechar uma menina na rodinha e gritar “beija, beija” nunca é com ela, e quando é, é por piada.

A essa altura da conversa, as duas chorávamos. Eu pelo menos chorava, segura na minha casa, branca, de classe média, com meu corpo aceitável, desejável, chorava de raiva e impotência por não poder ajudar minha amiga. Ela, na casa dela, a quilômetros de distância, abrindo o coração pra mim, falando de coisas que conta para poucos.

Ela detalhou ocasiões onde foi humilhada, exposta de maneira horrível, que não vou relatar aqui. Isso fez com que aos poucos saísse menos de casa, até simplesmente parar de sair, com amigos ou sozinha. Parou de tentar encontrar um relacionamento, fechou-se em sua solidão, onde encontrava um mínimo de segurança. Desenvolveu uma depressão profunda, que levou anos para começar a vencer.

Disse a ela que eu e ela somos vítimas da mesma coisa, do mesmo assédio, só que de duas maneiras diferentes, uma ainda mais cruel que a outra.

Somos todas vítimas de homens que acham que podem dar sua opinião sobre nossos corpos, que acham que têm a prerrogativa e o direito de gritar o que pensam sobre nós.

E minha amiga respondeu, com uma clareza fria de quem lida com isso há mais de vinte anos: "Somos reféns, Gabi, em cativeiros diferentes. Nós, reféns, por motivos diferentes, pelo mesmo algoz.”

Estamos todas encarceradas. Nossa liberdade não pode mais tardar.


Gabi Bianco acorda cedo de bom humor, cozinha bem, ama gatos, cachorros e pessoas indiscriminadamente, vegetariana, feminista, otimista, paulistana, publicitária, cheia dos projetos. Twitter Blog