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#9 Nossa relação com o dinheiro: o que é dinheiro pra você?

A ideia dessa trilha é olhar pra dentro. Encerrar um ciclo e abrir espaço pro novo.

A primeira parte dela - todos os textos até essa daqui (1 ao 8) - tiveram um enfoque bem subjetivo e buscaram fazer com a gente pudesse olhar pro passado com soltura e leveza, reconhecer aprendizados, celebrar um novo ciclo e, por fim, intencionar com abertura um próximo.

A segunda parte da trilha, que começa agora, sugere reflexões de coisas importantes, pilares nas nossas vidas: dinheiro, relações, comida, trabalho. A ideia é levantar a bola pra quem quiser cortar. Todos os textos vão trazer questionamentos importantes junto com ideias de caminhos e mais materiais pra quem quiser se aprofundar mais em cada um dos temas.

Escolhi começar com dinheiro. É, essa coisa maluca que comanda o mundo.

Não vou dar uma solução pra como a gente pode lidar com ele melhor, se organizar ou ficar ricas. Isso daí tem de monte na web. Quero provocar. Pra gente começar o ano escarafunchando lá dentro, tirando máscaras, entendendo nossos meios simbólicos de lidar com as coisas. Quem sabe, trazendo luz pra essas relações que não estão tão óbvias, a gente consegue simplificar e facilitar elas todas.

Estão prontas? Vamos lá.

1. O dinheiro parece ser uma daquelas realidades inquestionáveis

A gente usa o tempo todo, ganha, calcula, gasta, guarda, empresta, não vive sem.

Toda vez que a gente conversa sobre dinheiro, surgem inevitavelmente duas abordagens antagônicas:

Dinheiro é a raiz de todo mal.

Dinheiro é a solução de todos os problemas.

Mas o que é o dinheiro? De onde ele vem? Quem inventou? Porque ele demanda tanto do nosso tempo e energia?

Pra gente poder investigar mais a fundo nossas questões individuais com o dinheiro, nossas próprias construções, que dependem muito da nossa formação, nossa família e nossa história. precisamos antes topar olhar pra ele de um jeito mais curioso e frio. Pra mim foi muito importante fazer isso pra só depois lançar sobre ele uma visão mais subjetiva e emocional.

2. De onde veio o dinheiro? (ou, sim, existia vida antes dele)

A economia pré-monetária era baseada no escambo. Aquele que produzia mais do que o necessário pra sua subsistência podia trocar o excedente por outros bens. Acontece que, no mundo do escambo, tínhamos um problema de eficiência. Era difícil juntar “tenhos” e “queros”. Minhas galinhas pelo seu trigo. E se você não quisesse galinhas mas eu precisasse de trigo?

As primeiras formas de moeda foram a solução para esse problema. Qualquer coisa que fosse amplamente aceita (de conchas a porcos) poderia ser usada como crédito para uma aquisição. Bastava que houvesse confiança generalizada. Dinheiro estava ligado a fluxo, confiança e abundância. Foi uma invenção social com intuito de melhorar nossas vidas.

E melhorou. Muito do desenvolvimento econômico dos primeiros Estados-nação foi possibilitado pelo uso de moeda. Mercadorias puderam circular entre continentes, grandes avanços científicos foram financiados.

Antes de chegar nos dias de hoje, temos que passar pela invenção do papel-moeda. Como as moedas de metal eram muito pesadas e chatas de carregar, adotou-se a prática de guardá-las em um ourives que, em troca, entregava um comprovante de depósito. Esse papel era tão mais prático, que passou a ser trocado entre as pessoas. Se eu quisesse comprar algo do Zé, ao invés de ir até o ourives para sacar o meu ouro depositado, eu entregava o comprovante de depósito ao Zé, para que ele mesmo pudesse sacar. Quase como os cheques funcionam hoje.

Hoje, na sociedade ocidental, o dinheiro é essencialmente um símbolo, uma abstração. Se antes ele tinha um valor intrínseco (mercadoria, metais preciosos), desde o fim do sistema instituido em Bretton Woods, em 1971, ele não tem mais nem lastro (aquele depósito em ouro).

O valor não-simbólico do dinheiro se limita a um pedaço de papel quando não a bits em um sistema de computador - que é hoje como circula a imensa maioria dos valores existentes no planeta. 

Essa transição  - valor real para valor simbólico - acabou criando uma confusão mental.

É bem difícil entender a relação causal entre a história e o nosso entendimento psicológico de dinheiro, mas o que de fato ocorreu foi uma inversão de fatores: o que era um meio, uma tecnologia social, virou um fim, um bem/patrimônio.

Essa inversão é a raiz de boa parte dos problemas que enfrentamos hoje: desigualdade, ganância, individualismo, dívida. Dinheiro se tornou sinônimo de acumulação, controle e escassez.

Mas, se olharmos direitinho, ainda estamos falando de um constructo, uma invenção humana.

Dinheiro são números. E o valor desses números está única e exclusivamente nas nossas cabeças. O papel moeda e os bits e bytes só funcionam porque os agentes da economia (nós), confiam que aquilo tem algum valor, ou seja, que outros agentes também vão entendê-lo como valioso. 

Essencialmente dinheiro ainda é confiança. Então, no fim, ele pode ser o que a gente - como sociedade - quiser fazer dele.

3. O dinheiro e as mulheres

Nossa relação com o dinheiro é ainda mais nova e turva do que a dos homens.

Se pra eles trabalho e dinheiro sempre foi algo em pauta, sinônimo de patrimônio, sucesso, sustento e poder, pra nós, dinheiro foi sempre algo da alçada deles - quer trabalhássemos ou não.

A norma oficial ditava que a mulher devia ser resguardada em casa, se ocupando de afazeres domésticos, enquanto os homens asseguravam o sustento da família trabalhando no espaço da rua. Isso acontecia, principalmente, nas casas ricas:

"Olhando pra realidade brasileira, também se tratava de um estereótipo calçado nos valores da elite colonial - e muitas vezes espelhado nos relatos de viajantes europeus - que servia como instrumento ideológico para marcar a distinção entre as burguesas e as pobres. Basta aproximar-se da realidade de outrora para constatar que as mulheres pobres sempre trabalharam fora de casa."
- História das mulheres no Brasil -

Ricas ou pobres, a gente não lidava com o dinheiro.

Pras mulheres que ficavam no espaço do lar, trabalho e dinheiro era coisa dos homens. Pras mulheres pobres que trabalhavam nas fábricas, por exemplo, trabalho pesado não faltava, mas dinheiro seguiu, durante muito tempo, sendo coisa dos homens também.

Historicamente, durante muito tempo as mulheres eram obrigadas a entregar todos os ganhos para o marido.  

Além disso, as que trabalhavam no chão de fábrica, tinham que lidar com a fato de serem mal vistas:

"Em vez de ser admirada por ser "boa trabalhadora", como o homem em situação parecida, a mulher com trabalho assalariado tinha de defender sua reputação contra a poluição moral, uma vez que o assédio sexual era lendário. Eram também sempre acusadas de serem mães relapsas."
- História das mulheres no Brasil -

Conclusão: ganhar dinheiro fora de casa ou gerenciar quantias ganhas nunca foi entendido como tarefa nossa. E isso deve sim ser incluído na conta ao pensarmos na nossa relação com dinheiro.

4. Prática: o que é dinheiro pra você?

Por mais que muitos dos significados do dinheiro sejam reconhecidos coletivamente, por culturas e tradições, como o poder, por exemplo, cada uma de nós tem em si construções próprias pra ele, que vão depender da nossa nacionalidade, de onde fomos criadas, das nossas famílias, da relação dos nossos pais com grana, de todas as experiências vividas entorno dele e de como processamos isso internamente.

Aqui, o grande desafio é explorarmos esses significados ocultos um pouco mais, pra, quem sabe, começarmos a desvendar a nossa relação com dinheiro.

A sugestão é a seguinte:

Ache aquele tempinho pra você. Senta, medita por 5 minutos ou, se não quiser, faz 3 respirações bem profundas. Ganhe qualidade de presença antes de começar a prática. 

Depois, pegue um caderninho, uma caneta, e responda sim ou não pra esses três afirmações. Responda, junto com o sim ou não, o porque - com uma frase curta ou no máximo 5 linhas, o porque.

1. Dinheiro é problema

Ex.: Sim. Toda a vez que ele falta, há sofrimento e dificuldades. Toda a vez que ele sobra, também significa que houve sofrimento, má distribuição, e ainda, o acúmulo gera ganância, guerras e briga.

2. Dinheiro é solução

3. Dinheiro é só dinheiro

Também, reflita sobre qual afirmação fez com que você se identificasse mais. Qual você respondeu mais rápido? Qual teve mais dificuldade pra elaborar a resposta?

Por último, responda à seguinte pergunta:

O que é dinheiro pra mim?

Aqui a resposta pode ser mais longa. Reflita com carinho. Pra responder, vá lembrando de várias situações da sua vida que envolveram dinheiro: tristes, felizes, de ansiedade ou sossego.

Se sentir vontade, divida tudo isso com as outras mulheres no fórum, nesse tópico da trilha aqui.

Para nos libertarmos dos dilemas que vivemos em torno do dinheiro e acabar com a dominância simbólica dele sobre nossas vidas, temos que falar mais sobre isso, desencobrir as suas origens, dividir nossas angústias, sem vergonha nem tabu. E o melhor: entre mulheres.

Seguimos juntas.


Esse texto foi escrito em conjunto, por:

Camila Haddad fez administração, publicidade, cansou dos diplomas e mergulhou no mundo da economia colaborativa, depois de um mestrado em Londres. Fundou o Cinese e se dedica a estudar consumo colaborativo, relações de confiança entre as pessoas e articulação de redes. Dentro desse pacote, adora falar sobre a nossa relação com o dinheiro.

 Anna Haddad é fundadora da Comum. Escreve pra vários veículos sobre educação, colaboração, novos negócios e gênero, e dá consultorias ligadas à comunidades digitais e conteúdo direcionado pra mulheres.