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#16 [relato] Trabalho: o que tive de perder para fluir com a vida

Nota da editora: 

No começo dessa jornada sobre Finitude, passamos por um momento importante e decisivo: tentar entender de que forma ressignificar a palavra perda — ou, pelo menos, sacar dela o peso do instantaneamente estarrecedor. Durante toda a primeira fase, olhamos para esse conceito de forma a nos espreitarmos dele e investigá-lo com cuidado. A perda é, necessariamente, ruim? Agora, trazemos um relato inspirador de Daniela Arrais, que lista as perdas mais benéficas da sua trajetória profissional e como, a partir delas, se transformou na pessoa inspiradora que é hoje. Boa leitura! 


Perder dói. Um amor, um amigo, alguém da família, um trabalho.

Perder irrita. O carregador do celular, a bolsa, um vôo.

Perder paralisa. Faltam respostas, sobram frustração e medo.

Perder ensina. Amplia percepção e entendimento, muda rotas.

Perder transforma porque nos coloca diante do abismo. Explicita o que tínhamos, torna quase palpável o que foi embora. As certezas que tínhamos já não valem. O que prevíamos não serve mais. E nós adoramos estar no controle. Saber o que vai acontecer, traçar metas, vê-los ganhar corpo. Por mais que a gente queira viver a vida assim, ela vem e nos mostra, ciclicamente, que vamos ter de refazer os planos, aceitar o que vem, tirar alguma lição daquilo.

Talvez seja esse o maior aprendizado: deixar fluir. Desapegar do que não funciona mais, seja por escolha nossa, do outro ou do que se impõe e é impossível de evitar.

Pegar ou largar? Foto de Beatriz Xavier, artista convidada para ilustrar nossa trilha de Finitude

Pegar ou largar?
Foto de Beatriz Xavier, artista convidada para ilustrar nossa trilha de Finitude

Escrevo esse texto para compartilhar com vocês o que aprendi ao perder. Seriam muitas páginas caso fosse falar da vida inteira, então escolho colocar aqui o que tem a ver com o trabalho — e também com a criatividade, a autoconfiança e as descobertas. Se algo for útil para a sua caminhada, já terá sido uma alegria.

Perder o medo de colocar uma ideia no mundo

Há 11 anos criei um blog. E por causa dele ampliei minha visão de mundo, meu repertório. Fiz amigos, tive paqueras e namoros, encontrei minha sócia. Antes dele, eu sentia que ser jornalista era uma grande parte de mim, mas ainda sobrava espaço para ser mais. Eu olhava, ouvia, lia muita coisa todo dia. E entendi que absorver tudo sozinha não fazia sentido. Queria compartilhar o que me encantava (e também parar de mandar tanto e-mail para os amigos dizendo “olha isso, vê aquilo”).

Ter um blog me ensinou e ensina até hoje. Antes dele, eu tentava criar algo que desse vazão à minha criatividade me apoiando no outro. Tinha projetos com amigos, e eles nunca saiam do papel. Ao criar algo sozinha, vi que era possível. E, melhor ainda, que era gostoso demais. Aquilo me deu força, autoconfiança. Às vezes a gente só precisa de um pouco de coragem, né?

Perder o medo de experimentar

Em meio a uma dor de cotovelo, estava com uns amigos em um bar. Um deles tinha uma câmera de filmar (celular era apenas uma evolução do Nokia da cobrinha). Estávamos falando como o amor era foda, resolvi perguntar pro Juscelino, garçom: o que é o amor pra você hoje? A resposta me emocionou. Cheguei em casa, postei o vídeo. E acabei criando a primeira seção autoral do blog, que até então se valia de uma boa curadoria sobre o que outras pessoas estavam fazendo.

Colocar algo no ar que tinha surgido da minha cabeça foi muito poderoso. Entendi ali que não precisava esperar, que tinha a internet a meu favor. Só de escrever consigo lembrar do corpo acelerado pela novidade de dividir com mais gente minhas ideias. Eu nem tinha pensando muito, só fiz, com medo mesmo. E o resultado foi incrível. Várias pessoas começaram a ler o blog, a gostar dele, a se identificar com o que eu falava. Até hoje é assim, e fazê-lo é sempre a parte mais gostosa do meu dia.

Escrevendo isso, acabei lembrando de uma frase do livro “A grande magia”, de Elizabeth Gilbert, que nos incentiva muito a perder o medo e dar vazão à nossa criatividade:

“Acredito que o processo criativo é pura magia. Pois eis no que escolho acreditar a respeito de como funciona a criatividade: Acredito que nosso planeta é habitado não apenas por animais, plantas, bactérias e vírus, mas também por ideias. Estas são uma forma de vida energética, incorpórea. São completamente separadas de nós, mas capazes de interagir conosco — ainda que de um modo estranho. As ideias não têm um corpo material, mas têm consciência e, certamente, têm vontade própria. São movidas por um só impulso: o de se manifestar. E a única maneira pela qual uma ideia pode se manifestar em nosso mundo é por meio da colaboração com um parceiro humano. Ela só pode ser escoltada do nível do etéreo para o reino da realidade através dos esforços de um humano.”

Perder a ideia da perfeição

Enquanto uma ideia é só uma ideia guardada na gaveta ela é perfeita. Você só tá esperando o momento ideal para lançá-la. E aí o tempo passa, a ideia vai ganhando corpo, você projeta desejos e sonhos nela, acha que, quando ela for ao ar, você vai conquistar tudo. Ao mesmo tempo esse momento não chega, você se sente uma impostora, claro que nada vai dar certo. Alguém se identifica?

Vale mais colocar uma ideia boa no ar do que ficar esperando ela chegar ao formato ideal. Desapegar de uma ideia “perfeita” é colocá-la no mundo como ela é. Não existe perfeição, sabemos, mas ainda assim almejamos esse lugar de plenitude que nunca chega. Já pensou em colocar suas vontades em um projeto na internet, em um livro, no evento que você sempre quis fazer? Coloque. Aprenda fazendo. Quando sua ideia vai pro ar, os outros também têm chance de endossá-la. Pode haver críticas? Sem dúvida, e são elas que vão te ensinar também. O que quem ainda não teve a coragem pode não saber é que as respostas dos outros sobre o que criamos é um dose extra de motivação, é a certeza de que quando temos algo autêntico para compartilhar sempre vamos encontrar nossa tribo para ouvir, construir juntos.

Perder o medo do julgamento alheio

Quantas vezes você já deixou de fazer algo por medo do julgamento alheio? Aposto que muitas. Até hoje eu deixo, várias vezes. Acho que é resquício do meu tempo de Folha de S.Paulo, uma universidade na minha vida, onde aprendi quase tudo que sei de jornalismo. E também um lugar em que tudo tinha que ser muito bem feito, apurado, revisado, checado. Formou meu caráter profissional, sem dúvida, mas também me deixou com um autojulgamento incessante e com a sensação de que sempre vai ter alguém me espreitando para apontar algum erro.

Ainda assim, me esforço pra sair desse lugar. Tento escrever aquele texto que fico adiando e achando que ninguém vai ler. Posto alguma angústia no Instagram — o reduto de vida perfeita. Tento aparecer nos stories, mesmo que para que isso use aquele filtro de gatinho. Tem aquela frase que diz que quanto mais você julga o outro significa que você tem um julgamento muito forte de si mesmo. Quando a gente baixa essa régua, vê que na real muito disso está na nossa cabeça. As pessoas não estão nem com tempo para analisar tão profundamente cada passo que a gente dá.  

Perder o medo de se mostrar vulnerável

Essa coisa do Instagram eu gosto de falar porque vejo que sofremos diariamente com a vida alheia sendo editada e mostrada em seu esplendor. A gente sabe que não é tudo que a pessoa é. Ainda assim, passamos tanto tempo na rede social, vendo um volume surreal de informação, que emocionalmente nem sempre conseguimos fazer a distinção.

Me traz um senso de realidade ver que essa fórmula continua valendo para a blogueira fitness, ao mesmo tempo em que começa a ser hackeada. Quantos posts vocês viram ultimamente escritos por mulheres que falam que não estão dando contas, que estão exaustas, que não querem buscar o corpo perfeito, e sim aceitar diariamente e amar o que têm? Existe um espaço pra gente mostrar nossa multiplicidade na internet também. E cada vez que faço isso, além de me sentir mais conectada comigo mesma, me surpreendo com a interação que recebo. Tem muita gente no mesmo barco, que bom que dá para passar pelas tormentas ressignificando o que é mostrar a vida no Instagram.

Perder o medo de se expor (na medida escolhida por você)

Pausa para um momento vida pessoal. Achava que já tinha saído do armário em todos os aspectos da vida. Até o dia em que me dei conta que não falava muito dos meus relacionamentos na internet. Postei uma foto com a Laura chutando a porta do armário, aproveitando uma missão do @instamission que pedia: Fotografe novas famílias. Se ela aparecia nas minhas fotos sempre, agora era associada a essa informação. Foi surpreendente ver tanta gente endossando nosso amor. Hoje, sempre que nos posto, é a mesma coisa. E tem um aspecto que me traz a dimensão disso para além dos likes e comentários. Sempre tive receio da reação de uma tia minha em relação a isso. Ela é muito religiosa, bem tradicional. Dia desses, mandou parabéns pelo aniversário da Laura, que ela acompanha ali pelo Instagram. Foi tão bom naturalizar a presença de quem é fundamental pra mim. Fico feliz de dividir uma parte tão importante de quem sou, ainda mais em tempos difíceis como o que a gente vive. Não é que faço reality da nossa vida, longe disso, mas mostrar que a gente existe é importante.

Perder o medo quando as ideias chegam ao fim

Como matar um projeto surgiu alguns meses, quase um ano depois, de percebermos que alguns dos projetos não faziam mais sentido. Para nós, em primeiro lugar. Seria questão de tempo perder a relevância para os outros também. Trabalhamos com criação de projetos, conteúdo, eventos etc. Nos primeiros anos de empresa, era mais do que comum termos uma ideia, escolher um nome pra ela, criar um perfil no Instagram, comprar um domínio e lançá-la.

Uma ideia concretizada faz com que você se conheça mais, crie compromisso, comece a fazer sua comunidade. Parece que tudo faz sentido, sabe? Até o momento em que não faz mais. E postar se torna um fardo; interagir com os seguidores, uma tarefa que você vai sempre adiando. Vira um momento protocolar do seu dia. Na teoria, no entanto, você adora ter quase 30.000 seguidores — uau, né? Você honra esse número e o tempo que cada um decide gastar com o conteúdo que você produz. E você oscila, dizendo: agora vai, vou deixar esse desânimo de lado e fazer minha ideia se espalhar ainda mais. Pouco tempo depois, nada feito, você está igual.

É chegada a fase do limbo: você já tentou manter a empolgação, pensou em série de conteúdo, convidou alguém para dar uma animada na conversa. E nada feito. Você pensa: ah, beleza, vou deixar de postar uns dias, ninguém vai notar. E é provável que não note mesmo, a gente vive a era do excesso de informação. No próximo capítulo, o gato que subiu no telhado está se esgoelando lá em cima e você lembra daquela frase: ações definem prioridades. Tá na hora de parar de enrolar e assumir que você não está mais tão a fim assim.

Isso pode desencadear alguns processos. O primeiro é o de culpa. Por que não consegui levar pra frente? Sou péssima, todo mundo consegue fazer as coisas menos eu etc. Alguém aí se identifica com um chicotinho que não para de bater? Por aqui ele bomba, por mais que eu tenha plena consciência de que isso não me ajuda em nada. Outro, que poderíamos adotar com mais frequência, é sobre o tempo das coisas. Elas chegam ao fim. E tudo bem. Mais sobre isso em: comomatarumprojeto.com.br

Perder o medo de falhar

Há quatro anos, fizemos uma viagem pelo Vale do Silício e conhecemos diversas empresas, de pequenas a gigantes como Facebook, além de investidores, mentores. E uma constante no discurso era: nós não investimos em quem ainda não falhou. É aquele lema bem norte-americano de Fail fast, fail better (falhe rapidamente, falhe melhor). E porque eles priorizam empresas que já quebraram? Por conta dos inúmeros aprendizados que uma “perda” traz. Então, como vão colocar uma soma vultosa de dinheiro em uma ideia, melhor que as pessoas por trás delas já tenham aprendido o suficiente para que, agora, tudo seja sucesso.

Encerrar projetos ora bem-sucedidos, ora equivocados trouxe pra gente alívio. Não precisávamos mais mantê-los só porque um dia eles começaram a existir e teriam que continuar assim por tempo indeterminado. Liberou espaço para o novo também, pra focar no que realmente trazia alegria.

Perder o medo ao receber um sonoro não

Um outro momento importante na nossa trajetória se deu em 2013, quando chegamos a receber pêsames de agências de publicidade dizendo “o negócio de vocês acabou”. Explico. Há sete anos criamos o @instamission, um projeto de missões fotográficas cujo objetivo é promover a conexão entre as pessoas. O projeto é um sucesso comercial, tendo sido patrocinado por quase duas centenas de marcas. Em 2013, uma portaria do Ministério da Fazenda mudou as regras para promoções nas redes sociais. Até então era possível fazer em tempo curto os chamados concursos culturais. De um dia para o outro, eles poderiam continuar sendo feitos, mas apenas com autorização da Caixa, que levava até 120 dias para conceder a autorização.

A área da publicidade é da urgência (e isso daria outro texto), então um prazo desses tornaria nossa mecânica inviável. Por dois dias ficamos atônitas, falando o dia inteiro no Skype, perdidas. Nos demos esses dois dias de “luto”, pra depois entrar nas personagens “faça você mesma”. Falamos com advogados, eles nos mandaram orçamentos inviáveis. Resolvemos que íamos resolver. E começou um périplo de três meses que culminou em nós nos tornando a primeira empresa no Brasil a fazer promoções comerciais autorizadas pela Caixa. E com a Caixa usando o modelo que criamos de exemplo para quem mais quisesse.

Perder o medo de aprender a fazer algo pela primeira vez

Esse episódio é muito emblemático na nossa história porque foi um típico caso em que sim, perdemos, mas ganhamos muito. Perdemos seis ações que já estavam fechadas, ficamos três meses sem fazer promoções. Aprendemos a criar um contrato jurídico (com a ajuda de um amigo da área), a tentar (e conseguir) uma reunião com chefões na Caixa, a buscar soluções para o nosso problema. Além de ganharmos a viabilidade do negócio de volta, ganhamos ao ver que a nossa comunidade tão assídua e carinhosamente construída mal percebeu que não haviam missões patrocinadas. Vimos, naquele momento, que prêmios são ótimos, mas o que o @instamission promove de conexão é mais forte ainda.

Às vezes a gente perde em um momento pra ganhar muito mais depois.

Fica inevitável falar de resiliência aqui. Podíamos ter desanimado, desistido, gastado um dinheiro que não podíamos. No entanto, fomos firmes. O negócio era a gente, é até hoje. Então iríamos esgotar todas as soluções possíveis. Hoje contamos essa história com orgulho. E, quando um problema desse porte aparece, adotamos a postura que uma mentora nos ensinou: encare como desafio, é sinal de que vocês estão crescendo.

Perder o medo de ocupar espaços

Aliás, ter pessoas que nos incentivam é fundamental para que a gente tenha coragem de dar passos importantes. São elas que vão te dar um empurrão quando você tiver achando que não devia dar uma palestra para 2 mil pessoas, que não tem muito o que falar numa campanha. A gente tem essa mania de se achar menos, né? E graças ao patriarcado ocupamos menos espaços do que deveríamos. Então é muito importante dizer sim para os convites que fazem sentido, ir com medo mesmo, se fortalecer em relação ao que você faz. Provavelmente todas aqui somos muito boa no que fazemos. Caso tivéssemos a autoestima de um homem branco hétero já teríamos ocupado muito mais espaços. Então vamos lembrar disso sempre?

Perder a chance de não encontrar os seus

Tentando chegar ao fim desse texto — porque né, muitas páginas já — queria dividir com vocês que, quando a gente desapega um pouco do medo e cria coragem para se colocar na vida, os ganhos são imensos. Ao colocar ideias, projetos, textos e conversas na internet eu aprendi e aprendo mais sobre mim, sobre o outro, sobre o mundo. E acho que é assim com você também, né? Criamos conexões que, muitas vezes, extrapolam o virtual. Criamos nossa comunidade, achamos nossa tribo. E, juntos, nos mostrando mais, inclusive nos momentos mais vulneráveis, vamos percebendo empiricamente que somos muito mais parecidos do que diferentes. Que queremos viver uma vida plena e cheia de significado, com coragem pra fazer os movimentos que sabemos que estamos preparados pra viver, sem tanto medo nem julgamento. Que estamos aqui para aproveitar ao máximo o tempo que nos é dado.

Termino com um poema da Elizabeth Bishop. Um desses textos que fazem todo o sentido e que a gente tem vontade de colar no espelho do banheiro para lembrar, todo dia de manhã, que aceitar os processos traz uma leveza necessária para encarar a vida.

“A arte de perder não é nenhum mistério

tantas coisas contém em si o acidente

de perdê-las, que perder não é nada sério.

Perca um pouco a cada dia. Aceite austero,

a chave perdida, a hora gasta bestamente.

 

A arte de perder não é nenhum mistério.

Depois perca mais rápido, com mais critério:

lugares, nomes, a escala subsequente

da viagem não feita. Nada disso é sério.

Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero

lembrar a perda de três casas excelentes.

 

A arte de perder não é nenhum mistério.

Perdi duas cidades lindas. Um império

que era meu, dois rios, e mais um continente.

Tenho saudade deles. Mas não é nada sério.

Mesmo perder você (a voz, o ar etéreo, que eu amo)

não muda nada. Pois é evidente

que a arte de perder não chega a ser um mistério

por mais que pareça muito sério.”


Daniela Arrais é jornalista, dona do blog Don't Touch My Moleskine e cofundadora da Contente.
 


 

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