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#13 [texto] Mulheres na linha de frente: autocuidado e cuidado entre si

“Ninguém solta a mão de ninguém”: era o que dizia a frase que popularizou a onda solidária nascida pós-ressaca das eleições de 2018. Frente ao ganho de um candidato que representava retrocessos evidentes nas lutas populares, muitas de nós — principalmente quem estava na linha de frente — entristeceram.

Essa trama política trouxe à superfície uma outra fissura até então normalizada — ou pelo menos invisibilizada: mulheres com voz militante e ação ativista estão adoecendo. Apesar do laço estreito que une cada uma de nós frente às mesmas injustiças, pressões e opressões, mesmo assim ainda estamos muito aquém de criar espaços seguros e de proteção para quem está nas trincheiras, lutando por direitos.

Arte de Inès Longevial

Arte de Inès Longevial

Mas por que, afinal, autocuidado, nesse contexto, é tão importante?

Por mais que não percebamos ou queiramos evitar, inevitavelmente, para nós, mulheres, viver — e resistir — é um ato político. Basta estar viva. Contudo, quanto mais

Por isso, quando falamos sobre militantes e ativistas, o bem-estar emocional é uma ferramenta ainda mais necessária, já que tais mulheres enfrentam violências e repressão das mais diversas em suas lutas diárias.

“Para nós, o pessoal é político. Partimos desse fundamento feminista, na certeza de que a separação entre essas duas esferas só interessa ao poder patriarcal. Rejeitamos o individualismo e, ademais, reconhecemos que a dimensão pessoal da vida se sustenta em vínculos, em relações, em coletivos.”
— Trecho de "Bem-viver para a militância ativista"

E quando evocamos a importância do autocuidado e do cuidado entre si, estamos lançando uma mirada para além dos atos indulgentes e momentaneamente prazerosos. Queremos dar um passo além e oferecer uma mudança mais perene, que se alastre por todas as dimensões da nossa vida.

Autocuidado aparece, inúmeras vezes, conectado a imagens de mulheres cuidando da aparência, da estética, da beleza e do corpo, com atos que podem ser facilmente entendidos como superficiais e fúteis. Traz junto, também, uma tradução apolítica e excludente da palavra: a ideia de autocuidado difundida hoje está a milhas de distância do contexto feminista, de luta por direitos civis, em que nasceu há 20 anos, excluindo mulheres negras e periféricas tais quais a própria mãe do termo, Audre Lorde.
— Anna Haddad, em artigo para o Huffington Post

Considerando que andamos melhores juntas e que redes coesas têm um papel importante para o feminismo, o autocuidado tem também um caráter coletivo inegável. Não basta que olhemos para nós mesmas com cuidado, mas é urgente que estendamos esse olhar para outras de nós. O diálogo, as trocas de vivências e experiências e o acolhimento são capazes de gerar processos profundos de transformação e florescimento — para além do fortalecimento evidente e da ampliação das malhas ativistas.

Para além dos modismos, o autocuidado para mulheres na linha de frente é uma estratégia de sustentabilidade da nossa militância. É o autocuidado que será capaz de, quando aplicado profundamente — além da superfície das máscaras faciais e das permissões fugazes que nos damos por prazeres momentâneos e que têm, sim, seu espaço, mas que também têm sua validade — fomentar a criatividade e o bem-estar em nossos movimentos sociais. É essa mudança individual, coletiva e interna que nos deixará firmes, seguras e felizes para implodir o sistema patriarcal e machista que nos aprisiona.

“Cuidar de mim mesma não é autoindulgência, é uma autopreservação e isso é um ato de guerra política”
— Audre Lorde

Em termos organizacionais, é preciso que os movimentos estejam aptos e articulados para receber e amparar mulheres em situação de vulnerabilidade. É preciso que esses espaços e redes ampliem seus pilares não só para colocar mulheres na rua a lutar por nossos direitos, mas também para recebê-las de volta quando fragilizadas, enfraquecidas, abaladas. Mais que isso: é preciso que olhem para o autocuidado, inclusive, de forma preventiva. O que estamos deixando de fazer a fim de evitar que nossas mulheres adoeçam?

No âmbito individual, podemos olhar para como estamos nos tratando e como isso se amplia para as mulheres que nos cercam. Estamos ultrapassando limites? Não impondo contornos importantes? Estamos nos cobrando excessivamente? Sendo autocríticas? Respeitamos nossa saúde e física e mental ou colocamos a militância à frente de qualquer demanda pessoal? Em um nível mais sutil, podemos investigar como os ativismos penetram em outras dimensões da nossa vida. A ideia não é que sejamos sugadas e destruídas por lutas sociais, mas que nossa luta esteja a serviço de nosso bem-viver. Senão, que sentido teria?

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Para se aprofundar na temática:

Bem-viver para a militância ativista, criado pela CFEMEA e orientada pelo seu objetivo programático de garantir a sustentabilidade do ativismo das mulheres.

A Burst of Light, livro precioso da ativista Audre Lorde

Autocuidado como estratégia política, artigo publicado pela Revista Internacional de Direitos Humanos


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Gabrielle Estevans é jornalista, editora de conteúdo e coordenadora de projetos com propósito. Nessa trilha, é editora-chefe, participante e caseira. 


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