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#4 Relações: amores também podem ser planejados?

Ilustração de Kenesha Sneed

Ilustração de Kenesha Sneed

Das tenras lembranças que tenho das brincadeiras na infância, recordo de um tipo em particular — mais pasmada do que saudosa — em que deixávamos ao gosto do acaso decidir com que pessoa casaríamos. Toda uma sorte de joguinhos que profetizava o corte de cabelo, a cor dos olhos, a profissão do ser amado.

Também tenho uma memória vivida de, embalada pelo amor romântico, ficar horas e horas nesses passatempos, intercalando alegria e revolta, quando os resultados eram diferentes do que eu esperava. Como assim não vou ter um casal de gêmeos, casar com um francês ou uma francesa de olhos amendoados e morar em Paris? Não questionava se era eu quem estava sonhando ou se esses eram os sonhos que me enfiaram goela abaixo.

E aí de repente a vida acontece. A gente cresce e vai se despindo de desejos que não são nossos, de preconceitos que nos ensinaram, das métricas de sucesso e felicidade padronizadas, genéricas. Também percebe que é um tanto quanto perigoso deixar tudo à mercê do destino. Aí, com um pouco de juízo, a gente toma a vida nas próprias mãos e faz acontecer de um jeito que tenha mais sentido. Mas será que é bem assim mesmo?

Até meus 25 anos, todo mês de dezembro eu seguia fazendo a famigerada listinha do que eu esperava para o ano seguinte. Nela, claro, entrava o amor. Despejava adjetivos, mas fazia muito pouco para além da intenção depositada ali. Não há problema em desejar e pedir, mas se podemos fazer isso de forma mais consciente, de forma mais empoderada e até mais efetiva, diga-se de passagem, por que seguimos lançando pedidos para o universo e esperando que ele nos entregue o que achamos que queremos?

No conteúdo especial da Virada, aqui da Comum, nossa proposta é que a gente comece 2018 partindo de um outro lugar que não o da cobrança e das metas inatingíveis. Nosso convite é que olhemos para dentro de forma sensata e sincera; que consigamos entender nossas necessidades reais e que aí, a partir desse espaço mais calmo e contemplativo, a gente desenhe o ano que a gente quer.

Nos relacionamentos também.

Claro, há um caráter de imprevisibilidade nas relações. Mas se, ao nos ligarmos a outras pessoas, estivermos lúcidas do que queremos e do que podemos oferecer, por exemplo, há uma chance grande das eventualidades não nos tirarem tanto do prumo. Isso faz com que criemos vínculos mais verdadeiros e íntegros. Faz com que a gente não saia por aí aceitando qualquer coisa. E não falo somente de relações amorosas.

Não é sobre controle, mas sobre organizar minimamente o que sentimos e o que desejamos e também de que forma podemos chegar lá. É como, num barco, apontar para a direção que queremos tomar e remar — mas conscientes e tranquilas com o fato de que, inevitavelmente, haverá sabores e dissabores da viagem que já não são por nossa conta.

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Nossa sugestão de prática

Balanços anuais são bons. O intervalo de um ano é um tempo útil para que consigamos olhar para trás, refletir sobre o que deu certo, o que saiu dos trilhos, no que podemos nos aprimorar. Mas se pensarmos que nossos relacionamentos, por exemplo, não acontecem respeitando essas métricas temporais que nos colocamos, talvez valha a pena investir num outro tipo de balanço, que mire uma vida inteira. Essa é nossa aposta.

Para essa prática, tire uma hora e tenha papeis e canetas à mão. Sente-se num lugar tranquilo, que você não seja interrompida ou que se distraia facilmente. Respire profundamente de cinco a dez vezes, para aquietar a mente e para que seu corpo entenda que está entrando, agora, num outro momento, numa pausa, num modo de autocuidado.

Após respirar conscientemente, escreva numa folha cinco valores que você considera imprescindíveis em qualquer tipo de relação. Tente não racionalizar muito sobre. Apenas escreva o que vier à cabeça.

Tire um momento para olhar para a lista. Depois, selecione três. Tente lembrar das suas relações mais importantes. Elas, de forma geral, apresentam esses valores?

Depois, tome mais um tempo e escolha apenas um deles. Agora, pergunte-se: ofereço isso às pessoas com quem me relaciono?

É normal que fixadas em cobrar dos outros, não percebamos que também não estamos oferecendo. Assim como a autoapreciação, quando enxergamos na gente aquilo que achamos valoroso, também somos capazes de encontrar a mesma fonte nas outras pessoas.

Em seguida, partindo desse lugar mais lúcido, vamos traçar um plano de ação. Pegue uma nova folha e desenhe uma linha no meio.

De um lado, no centro, faça um círculo. Esse é o seu valor. Fora dele, coloque o que você, para você, não faz parte desse valor. Tente traçar seus limites. Frases, ações, situações: tudo é válido. Não se prenda tanto à forma como vai escrever, mas sim aos sentimentos que brotam daí. Parta do questionamento “o que fica fora desse valor que acredito?” e deixe fluir.

Limites traçados, vamos para o outro lado da linha. Lá, escreva três coisas que você pode fazer para colaborar para que esse valor floresça nas suas relações. Opte por verbos de ação, frases simples e diretas e sem palavras negativas. Por exemplo: serei mais compreensiva; Farei pedidos mais claros; Vou expor mais o que sinto; Em casos de dúvida, irei perguntar antes de tirar conclusões.

Tire uma foto e vez que outra dê uma olhadinha. Faça um check in, tire uns minutos para analisar com afeto se aquilo ainda faz sentido, se os acordos e os limites estão dando pé. Se necessário, refaça o processo. Não precisamos ficar estagnadas em diagnósticos e resoluções escritas em pedra. Olhar para dentro é um recurso contínuo, que requer entrega, compaixão e calma.

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Feliz vida. Te espero no fórum para trocarmos percepções, possíveis angústias e experiências. Seguimos juntas. 


Gabrielle Estevans é jornalista, editora de conteúdo e coordenadora de projetos com propósito. Na Comum, é editora-chefe, participante e caseira.