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#19 O amor como conhecemos: perpetuamos relações nocivas sem saber

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Quando falamos em amor, compramos o pacote pronto do amor romântico. Ele está por todos os lados: nas músicas, nos livros que lemos para o vestibular, nas poesias, nos filmes, na nossa linguagem. Ele permeia tudo, e é quase invisível, porque já está embrenhado na nossa cultura. E se algo está na nossa cultura, está em nós.

Se não trucarmos os ideias postos, se não paramos para pensar no que amor significa para nós, se não pausarmos um pouco o andar da carruagem para refletir o que é uma relação saudável, acabamos só reproduzimos padrões nocivos de relacionamentos românticos.

Isso não seria uma questão se o ideal romântico não estivesse ajudando a perpetuar bases sociais e relacionais extremamente ruins.

 

1. Bases sociais compulsórias

 

Socialmente, o amor romântico é heteronormativo e monogâmico.

Ele não contempla a diversidade de gênero, orientação sexual ou arranjos possíveis. Ele conta uma narrativa: um parzinho, homem e mulher. Não que essa história não seja válida, real. Ela é. Mas ela é uma das possíveis dentre milhares de outras, igualmente genuínas, mas que permanecem à margem, escondidas, e portanto vistas como não naturais.

O amor romântico também perpetua estereótipos nocivos de gênero.

Eu sosseguei / ontem foi a despedida da balada dessa vida de solteiro / eu sosseguei / mudei a rota e meus planos / o que eu estava procurando / eu achei, em você
- Jorge e Mateus

Se olharmos com um pouquinho de atenção, a história de amor que vemos por todos os cantos traz, consigo, ideias de feminilidade e de masculinidade tóxicos: a mulher é aquela passiva, que espera, que anseia por uma relação de afeto e carinho, a guardiã da monogamia. Tudo o que essa mulher quer é um parceiro e uma família, filhos. De outro lado, o homem é aquele que passa a vida toda trocando de parceiras, buscando sexo sem compromisso. É ele também que resolve, ao encontrar a "mulher ideal", virar a chave, "sossegar", mudar de vida. Ele é o sujeito ativo. É ele quem tem o poder nas mãos.

2. Um amor impossível

 

“Eu me afasto e me defendo de você / mas depois me entrego / faço tipo falo coisas que eu não sou / mas depois eu nego / mas a verdade é que eu sou louco por você / e tenho medo de pensar em te perder / eu preciso aceitar que não dá mais pra separar as nossas vidas” 
- Evidências, Chitãozinho e xororó

O amor romântico é também um amor cheio de adjetivos idealizados: ele é puro, verdadeiro. Um sentimento quase que santificado. Ele também é incomensurável e eterno.

Quando ele surge, ele transforma as pessoas envolvidas. O homem que ama deixa a vida de esbórnia, os maus hábitos, e passa a ser um cara confiável, honesto, dedicado. Quantas vezes já não ouvimos essa história, nos contos infantis, em músicas no rádio e até das nossas mães?

Esse amor também persiste, supera todos os obstáculos. Ele não desiste fácil. E, geralmente, essa sobrecarga da superação recai sobre os ombros da mulher:

"Se você ama de verdade, tenta mais um pouco."

"Se ele é o homem da sua vida, perdoa."

"Você tem certeza que é ele? Se for, aguenta firme. É assim mesmo."

Um amor que abre mão de tudo, que é sinônimo de entrega total e absoluta. 

Se olharmos com um tanto menos de ilusão e um pouco mais de realidade, esse ideal de amor acaba sustentando relações patriarcais, sexistas, desproporcionais e equilibradas.

É a justificativa perfeita para abusos de poder e violência, tanto emocionais quanto físicas. É também um ótimo jeito de manter as mulheres em uma posição de passividade e doação que subjulga ao invés de igualar. Ou seja: mantém o padrão de poder vigente e inequânime.

3. Um mundo interno de confusão e desequilíbrio

 

“Não posso dizer adeus / se não eu vou chorar / se não eu vou sofrer / se eu te perder de vez / eu não vou aguentar / eu vou morrer” 
- Raça negra

Não poderia ser diferente. Para sustentarmos uma relação baseada nessa história de amor romântico, apresentamos características internas bastante nocivas, que, dentro desse contexto, são entendidas como comuns, aceitáveis: apego, controle, dependência, ciúme, entre outras coisas.

Mas, nesse entendimento cultural do que é amor, isso tudo é justificável. Muitas vezes, até mesmo desejável:

"Ele tem ciúmes porque te ama."

"Ele não quer que você viaje porque tem medo de te perder."

Também, a união que esse amor propõe é quase um amalgama, uma fusão dos dois seres: a metade da laranja, a tampa da panela. Dois que viraram um. Até que a morte nos separe. Na realidade das nossas relações, essa narrativa representa padrões bem menos emocionantes e bonitos de ver: dependência, perda de individualidade, falta de autonomia afetiva e sofrimento.

4. Que tipo de relações estamos cultivando?

 

Mudar a linguagem, aguçar olhos e ouvidos para músicas, filmes, para a mídia, marcar posição com amigos e família a cada vez que algo dentro de padrões encaixotados e nocivos é dito, faz muito sentido e é crucial para uma mudança de paradigmas.

Mas antes de querer resetar a história e lançar contracultura (ou ao mesmo tempo que fazemos isso), precisamos checar onde estamos internamente, que tipo de relação estamos cultivando.

O que estamos fazendo nas nossas próprias relações? Estamos incorporando essas percepções mais críticas? Estamos praticando um outro tipo de amor, mais possível, real, lúcido, saudável?

Esse amor não está pronto. Ele é individual: nasce conosco, dependendo do nosso momento, do nosso contexto, de quem somos e o que queremos. Ele nasce, também, na relação com o outro (ou os outros): é uma construção conjunta.

Ao menos, precisamos fincar o pé no que não queremos perpetuar. Quebrar com a narrativa de amor compulsória e pensar um pouco. Com o que não queremos ser coniventes? O que, numa relação, não queremos sustentar de jeito nenhum?

Ter consciência do estereótipo romântico que nos rodeia, encará-lo, trucá-lo e decidir ir por um outro caminho ao invés de reproduzi-lo inteiramente já é o maior passo de todos. E isso não significa, de jeito nenhum, deixar de ter sonhos e aspirações, deixar de amar, de cultivar afeto: pelo contrário. Significa amar de um modo menos irreal, mais justo e saudável, para nós e nossos parceiros e parceiras.

Seguimos falando sobre isso lá no fórum. Te espero.


Anna Haddad é fundadora da Comum. Escreve pra vários veículos sobre educação, colaboração, novos negócios e gênero, e dá consultorias ligadas à comunidades digitais e conteúdo direcionado pra mulheres.