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#18 Novos arranjos de relacionamento — possibilidades e desafios

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Pessoa nenhuma é uma ilha. Não chegamos sós e não andamos sozinhos. Por isso, quando falamos de autonomia afetiva é preciso entender que todos os seres estão em relação com outros indivíduos, o tempo todo. Nós somos classificados como seres sociais que se comunicam por uma linguagem criada por nós mesmos e isso facilita trocas e disseminação de informação. A autonomia é esse lugar que possibilita que tenhamos uma base firme, que nos permita estar bem conosco mesmas, para além das circunstâncias externas. É também a partir dela que criamos novas possibilidades de interação mais lúcidas.

Nossas relações começam a se formar logo após o nascimento, temos um relação primária que ocorre com nossa mãe e posteriormente com o pai, pensando em uma ordem comum de interação. Ao longo das nossas vidas vão sendo criados agrupamentos familiares ao redor desses pais e sendo inseridos outros indivíduos que passam a fazer parte das nossas relações sociais. Posteriormente, surge as relações sexuais que nos conectam com o outro não mais por uma relação consanguínea e compulsória. Essas novas relações também trazem interações com outros membros do convívio desses(as) parceiros(as). E, assim, vamos ampliando nossa rede.

Amor livre era o nome do grupo que moderei durante alguns anos no facebook. Por lá problematizamos a monogamia e as novas formas de relacionamento. Depois de altos e baixo e mudanças na gestão do grupo alterei seu nome para Amor em Rede. Ainda que nosso grande desejo seja a liberdade nas relações, essa mudança foi necessária porque o termo amor livre já carrega uma série de distorções, principalmente, por seu uso para justificar abusos, além de ser um termo que que não acolhe a complexidades das relações humanas e suas interdependências.

Ao mesmo tempo, se tornou perceptível que ao falar de relacionamentos focamos mais em tratar de relações afetivas e sexuais em pares (ou casais), mesmo quando há a tentativa de falar de novos arranjos de relacionamento. Além disso, nos esquecemos que nossas relações possuem diferentes níveis de interação  e diferentes intenções. Todas essas relações de alguma forma influenciam na nossa formação emocional e na nossa autonomia.

Monogamia compulsória

Quando falamos de monogamia compulsória é preciso ter a clareza de que esse modelo de relação nos é apresentando como uma única forma de relacionamento afetivo e sexual possível, que historicamente tem suas raízes no surgimento da propriedade privada e teve sua disseminação na cultura ocidental. Recebemos uma educação afetiva e sexual que coloca os papéis de gênero, masculino e feminino, em uma posição central no núcleo familiar e principalmente que ressalta o homem como o responsável por aquele agrupamento. Essas regras de relacionamento entorno dos papéis de gênero são conhecidas como heteronormatividade, presentes também em relações homoafetivas ou homossexuais.

Ao buscar compreender o modelo de relacionamento monogâmico é preciso, em primeiro lugar, entender essas normas sociais, já que fazem parte nosso desenvolvimento emocional e sexual. É possível exemplificar esses papéis de gênero sendo aqueles onde:

O homem é o principal responsável econômico, o provedor. Aquele que tem a maior força de decisão dentro do grupo;

A mulher é a responsável pela vida doméstica, pela criação dos filhos e está submissa ao homem/pai do grupo;  

O homem tem consentimento social para viver sua autonomia sexual e até mesmo afetiva enquanto a mulher deve ser a responsável pelo cuidado e afeto dos membros da família nuclear;

Ao homem é oferecido espaços para que se exerça sua sexualidade enquanto às mulheres é restringido a manipulação do próprio corpo;

O homem é aquele que tem o papel de segurança e alicerce da família e a mulher de apoio a esse homem;

A monogamia também pode ser utilizada — quando falamos em relações de poder — como uma estratégia de cerceamento do corpo da mulher e lugar de controle reprodutivo. Enquanto, por exemplo, a traição pelo homem é normatizada socialmente e validada como um exercício importante de sua masculinidade — inclusive com espaços adequados para o exercício dessa autonomia sexual (como são as casas de prostituição) —, as mulheres são negligenciadas ao desenvolvimento de sua sexualidade e, frequentemente, são punidas ao ousar exercitar uma vida sexual autônoma.

Quando trato que essas normas permeiam também relações homoafetivas é devido à observação e reconhecimento desses papéis entre pares do mesmo sexo, mesmo de forma inconsciente, estimulada por posições de poder e papéis determinados dentro de uma relação em pares com exclusividade sexual e/ou afetiva.

Vivemos todos os dias diversas relações, algumas também sexuais. Para melhor compreensão é possível classificar as relações em alguns tipos. 

Identificando as relações 

Relações Afetivas - que promovem uma conexão de segurança e apoio emocional entre os pares;

Relações Sexuais - onde há a manipulação e acesso ao próprio corpo e ao do outro

Relações Econômicas - onde há trocas de moedas por tempo de trabalho, serviços ou produtos produzidos por indivíduos;

Relações Intelectuais - onde há trocas de saberes e produções culturais;

Relações Parentais - sendo seu principal indicador a conexões consanguínea, ou relação entre membros de uma mesma família;

Relações Espirituais - aquelas em que os membros de um grupo se relacionam devido uma mesma visão religiosa, moral ou metafísica.

Quando olhamos para essa lista de relações, percebemos que o sexo e a economia não são as únicas conexões que podemos estabelecer com outro indivíduo, ideal fortemente arraigada no modelo compulsório da monogamia. É possível vivenciar trocas e estabelecer relações profundas em diversas esferas e também nutrir nossa autonomia afetiva em todos esses campos. Muitas vezes a monogamia é apresentada, de forma romântica, como a possibilidade de se encontrar todas essas conexões em um único ser.

Somos seres interdependentes e nos apoiamos em diversas relações para que possamos viver. Para ter um lugar de segurança para morar, para ter suporte emocional, para desenvolver inovação, para entender o mundo — e entre tantas outras possibilidades — é necessário nos relacionarmos.

Atualmente, vemos que o estímulo à independência econômica, afetiva e à revolução sexual da mulher coloca em xeque o papel da parceira ou do parceiro exclusivo nas relações. Se somos tão independentes para que serve uma relação? Por que devemos nos submeter a um relacionamento de dependência se esse lugar nos prejudica em muitos momentos?

Assim, emergem tentativas de novos arranjos de relacionamento que tragam outros significados às conexões estabelecidas entre os indivíduos. Qual então seria o novo modelo? Há apenas um único modelo?

Alguns aspectos relevantes que  nos ajudam a entender a mudança de paradigma dos arranjos relacionais são:

Tipo de Conexão: o que me conecta com o outro? o que me atrai nessa relação? é a possibilidade de suporte econômico? a interação sexual? o possível apoio emocional?

Profundidade: o quanto permito o acesso do outro a minha intimidade? quanto tempo me dedico a relação ou posso me dedicar?

Intencionalidade: o que espero ou desejo do outro?

Comunicação: me comunico claramente sobre minhas intenções? sobre meus desejos e necessidades? escuto as necessidades do outro?

Acordos: estou ciente do que o outro necessita de mim? me disponibilizo para suas demandas?

Responsabilidade: cumpro nossos acordos? cuido de mim dentro dessa relação? estou sendo cuidada? cuido do outro?

Consentimento: conheço meus limites? estou ciente das minhas fragilidades? permito o acesso do outro as minhas fragilidades?

Poder e Liderança: aceito que o outro possa ter uma maior experiência? sou responsável durante o aprendizado do outro? abuso do meu poder na relação?

Independência: vivencio minhas decisões de maneira consciente? me submeto aos desejos e necessidades do outro?

Confessionalidade:  será compartilhado todos os eventos relacionados a outras relações dos pares? é necessário compartilhar?

Pela minha vivência e também por meio de pesquisas e diálogo com pessoas que experienciam novas formas de relacionamento, foi possível mapear alguns tipos de arranjos que vêm emergindo como alternativa ao tradicional modelo da monogamia. Eles também carregam uma série de desafios e promovem acesso a lugares desconhecidos dos nossos aspectos emocionais. 

Novos arranjos 

Relacionamento aberto

Nesse formato é permitido aos membros interagir sexualmente com outras pessoas além de seus pares. Geralmente, acompanha uma necessidade de exclusividade emocional ou ausência de confessionalidade. Alguns problemas que ocorrem nesse formato é a interação de apenas um membro com outras pessoas e a submissão de um dos pares à situação.

É comum que muitos casais escolham  pela “abertura” de relacionamento na tentativa de um novo arranjo ou uma versão mais moderna de seus relacionamento, alguns até chegam a permitir interações emocionais mais profundas com outros pares ou indivíduos além daquele núcleo central e inicial.

Troca de casais ou Swing

Casais que se relacionam afetivamente mantém exclusividade em relação ao afeto mas permitem, sob algumas regras, a interação sexual com outros casais. Geralmente, esse tipo de relacionamento permite a interação com outros pares desde que não haja aprofundamento na amizade ou relação afetiva com o outro par.

Algumas vezes uma relação de swing pode levar a uma interação poliafetiva quando os pares (dois casais, por exemplo) permitem e aprofundam suas relações afetivas e sexuais.

Poliafetividade

Talvez um termo retórico para um tipo de interação que já ocorre comumente em nossas vidas, que é o afeto entre os indivíduos, mas nesse caso com a permissão de interação sexual também entre vários membros de um grupo, onde todos estão conscientes da existência desse tipo de interação e possuem acordos próprios dentro do grupo.

Ménage à trois

Tipo de relação eventual que ocorre entre um par e um indivíduo. Geralmente, o terceiro membro pertence a relação apenas para uma interação sexual e de forma superficial. Quando um casal objetifica e busca um indivíduo (geralmente, uma mulher) para interação apenas para satisfação deles, o par é nomeado como "caçadores de unicórnio" e o indivíduo como "unicórnio".

Esse tipo de relação dificilmente permite um aprofundamento afetivo entre o par e o indivíduo. Quando ela ocorre, também se torna uma relação poliafetiva.

Relações livres

Foi formado no Brasil uma rede de indivíduos que tratam como soberana a liberdade afetiva e sexual de seus membros sem a necessidade de envolvimento entre todos os indivíduos do grupo (como no caso da poliafetividade). Também não exige confessionalidade, mas necessita de uma postura ética entre os envolvidos.

Coabitação

Morar no mesmo espaço físico atualmente não necessita de que seus membros tenham uma relação parental ou sexual, como no caso de um casamento convencional. É possível habitar uma mesma casa com pessoas apenas por uma necessidade de suporte econômico, por afinidade ou conexão afetiva, onde são compartilhadas as despesas de uma residência e as responsabilidades com o espaço físico.

Prostituição

A intersecção entre relações sexuais e econômicas vem sendo discutida como uma possibilidade de troca econômica e autonomia do corpo. Ainda que haja diversos questionamentos sobre a ética e condições de trabalho essa é uma possibilidade de troca entre indivíduos que vem sendo exercida há muito tempo e atualmente está presente nas pautas feministas.

Comunidades de interesse ou intencionais

Focada em interações intelectuais são agrupamentos que permitem trocas por área de interesse, podem ocorrem em um campo apenas virtual ou  se materializam por produções culturais, educacionais, literárias ou outras atividades que estimulam interação entre seus membros.

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Percebemos que nos novos arranjos emergem diferentes interações. Elas também podem se estabelecer com maior ou menor profundidade e necessitam de acordos claros, como também de responsabilidade entre os indivíduos daquele grupo/par e atenção as suas necessidades.

Outro fator de grande importância nos novos arranjos de relacionamento são as prioridades e tempo que disponibilizamos para elas. Quanto maior o número de relações e interações maior a necessidade de disponibilizar tempo. Alguma vezes, voltar ou permanecer dentro de uma relação onde os papéis estão normatizados — ou seja, claramente definidos socialmente — faz com que o arranjo convencional da exclusividade monogâmica seja uma escolha consciente pelos pares. Isso porque a regra e convencionalidade desse arranjo facilita a organização dentro do tempo linear industrial qual estamos condicionados desde o século XIX.

O problema é que esse tempo vem mudando, nossa esfera de relações está saindo do núcleo familiar tradicional para interações mais voláteis e em campos também virtuais. Sendo assim, provavelmente a monogamia se torne apenas uma das opções de arranjo, principalmente para aqueles que têm dificuldade de gestão de relacionamento. É importante que a escolha pela exclusividade ou o formato monogâmico de relacionamento esteja claro a todos os envolvidos e seja uma escolha consciente sobre seus riscos, desafios e limitações de aprendizagem.

Quanto maior a diversidade das relações e interações maior a possibilidade de aprendizagem e vivência de novas experiências.

É possível também identificar que com novos arranjos de relacionamento podemos ter mudanças no tipo de interação ou conexão entre os membros de um grupo — por exemplo, iniciar uma interação com uma pessoa por uma intenção sexual e ao longo do tempo essa relação mudar para uma conexão apenas intelectual ou afetiva.

A autonomia sobre nossos corpos e sentimentos nos dá poder de escolhas e gera responsabilidade com os envolvidos. O futuro das relações poderá ser muito mais rico e trazer desafios que nem imaginamos. Quando nos abrimos a novas possibilidades e nos disponibilizamos a essas experiências, podemos fazer escolhas desse lugar mais lúcido, com consciência maior das cartas que estão na mesa.

Quero continuar essa conversa lá no fórum. Vamos?


Flavia Amorim é moderadora há 4 anos de um grupo de discussão sobre a desconstrução da monogamia e novos arranjos de relacionamento, já participou de debates e pesquisas sobre relações para trabalhos acadêmicos e produções de TV, organizou mais de 20 encontros sobre relações não-monogâmicas, é uma entusiasta da economia e cultura colaborativa, formada em Comunicação Social - Relações Públicas, estuda Comunicação Não-Violenta (CNV), é ativista feminista e acredita que podemos ter relações afetivas e sexuais mais saudáveis, responsáveis e divertidas.