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#18 [texto] Como apoiar alguém que perdeu: o fio comum da compaixão

As nossas perdas são duras e penosas. Quem já passou pela morte de uma pessoa querida, por exemplo, sabe. É uma das coisas mais difíceis da vida inteira: lidar com o desaparecimento de alguém que você ama da face da terra. Um dia, e plaft: aquele ser não existe mais.

"De repente eu estou lá lavando louça, em casa, e penso: porque estou aqui lavando louça? A minha mãe morreu."

(assinante da Comum, sobre perda recente da mãe)

Ainda que cuidemos de contemplar o fim e nos movimentar de uma perspectiva preenchida apenas por lamúrias para uma outra, em que o fim é ciclo e movimento natural da vida, a verdade é que dói. Primeiro, temos de lidar com o apego e tudo o que é há de mais mundano: a saudade do corpo físico, da voz, das palavras, das ideias. Em um plano mais profundo, uma reorganização sistêmica se dá: como placas tectônicas que se movem depois de um terremoto, quando alguém que amamos morre, as coisas, invariavelmente, mudam de lugar. As prioridades têm de se rearranjar, já que muita coisa perde o sentido que tinha antes.

Muito embora cada pessoa viva o luto de um modo diferente — algumas se retiram e se voltam para dentro, outras se emocionam e choram com frequência, enquanto outras, ainda, não expressam emoções e adotam uma postura firme e solucionadora — todas passam por uma reorganização interna.

"Ainda que o ser humano traga consigo a certeza de sua própria finitude, a morte não deixa de provocar um forte impacto na subjetividade daquele que se depara com uma perda significativa, demandando uma reorganização do ego por meio do processo de elaboração do luto. O medo de perder e não querer se desapegar daquele que já não existe mais, justifica o fato de muitas vezes o indivíduo apresentar uma resistência para entrar em contato com a morte do outro e com sua própria condição de ser mortal."

Do livro Amor e Perda: as raízes do luto e suas complicações, de Colin Murray Parkes.

Tudo tem de se reconfigurar de outro modo, com aquela peça a menos no tabuleiro: se no mundo interno abre-se um vão para ressignificarmos conceitos, no mundo de fora as dinâmicas das relações, principalmente familiares, se transformam.

"O luto — reação natural e esperada à perda de um ente querido — é vivido tanto individualmente como no contexto familiar, e uma perda pode influenciar o funcionamento e a dinâmica de uma família, uma vez que, a família vista como um sistema integrado de relações é alterada para sempre e os seus membros são obrigados a se reorganizar."

Do livro A dinâmica familiar no processo de luto, de Mayra Delalibera.

Quem perdeu alguém muito próximo e querido morre um pouco também, no sentido simbólico: muda, se reordena. É uma jornada comprida, difícil e bonita ao mesmo tempo.

Ao longo do caminho, quem está ao lado — parceiros, amigos, pessoas muito próximas — são diretamente afetadas pelo luto e tem de, necessariamente, encontrar seu lugar naquele processo profundo do outro, o que, na maioria das vezes, é desafiador.

Milhares de texto na internet falam sobre isso: como ajudar alguém em luto. Desde dicas sobre o que dizer e o que não dizer, com exemplos de frases prontas, até conselhos sobre como ser um amigo presente e trazer pitadas de felicidade para a vida daquele que perdeu alguém. Mas o exercício é muito mais difícil que isso. É preciso ser compassivo para conseguir apoiar uma pessoa em processo intenso de luto.

Imagem delicada e afiada da nossa artista convidada para essa trilha, Beatriz Xavier

Imagem delicada e afiada da nossa artista convidada para essa trilha, Beatriz Xavier

Passei por uma perda recente e importante. Já sabia que o assunto morte era um tabu e esperava comportamentos estranhos das pessoas mais distantes, principalmente nas cerimônias de velório e enterro. Foi exatamente como tudo se desenrolou: frases frias e educadas, outras de uma fé bastante particular, falas de inconformismo, autocentramento e  comentários fora de contexto imperaram:

"Foi melhor assim."

"Ele está ao lado de Jesus agora."

"Ele estava sofrendo muito. Enfim descansou."

"Como você está diferente, lembro de você pequenininha."

"Você emagreceu?"

"Eu era muito amigo do seu pai, viu? Vou sentir falta dele tanto quanto você."

Mas a minha grande descoberta foi o ato contínuo. Depois que o corpo estava a sete palmos da superfície e os desconhecidos voltaram para suas casas, surpreendentemente, a maior dificuldade em lidar com o meu sofrimento veio das pessoas mais próximas.

Algumas simplesmente não faziam ideia do que estava se passando comigo, enquanto outras pareciam desconfortáveis demais com a minha dor para sustentar um campo sólido de apoio estável e presente.

A partir dessa experiência, descobri alguns caminhos que podem nos despertar para o processo de luto dos outros. Não há receita de bolo ou passo a passo: só direcionamentos para treinarmos uma visão mais compassiva.

* * *

1. Pode ser que aquela pessoa não seja mais a mesma por algum tempo (ou para sempre)

Às vezes, perdemos um pouco das pessoas que estão de luto. O estranhamento acontece frequentemente com amigos muito próximos, ou com companheiros que moram juntos e dividem uma vida. De repente, a pessoa com quem você estava acostumado a lidar todos os dias não está mais lá. Age diferente, se fechou, não tem espaço emocional para lidar com demandas comuns da relação ou da rotina da casa. Compreender, dia após dia, que aquele ao lado está em um momento singular é parte importante de uma convivência acolhedora.

2. Dê espaço

A maioria das dicas espalhadas na web fala sobre ações de apoio: levar comida, chamar para sair, incentivar a adotar um animal de estimação. Mas muitas vezes o melhor apoio pode vir em forma de compreensão, espaço e silêncio.

3. Cuidado com o autocentramento

Quando perdi meu pai, recentemente, notei que o maior problema não era o que as pessoas deixavam de fazer por mim — até porque, muitas vezes, não há o que ser feito efetivamente — mas sim o que elas faziam: seguiam autocentradas, demandando atenção, compartilhando problemas, colocando as próprias questões em primeiro lugar ou esperando que eu agisse de maneira usual.

É importante manter o luto do outro como um lembrete diário. Uma boa pergunta para se fazer mentalmente sempre que for entrar em contato com a pessoa, é: o que eu posso fazer para deixar o dia dessa pessoa mais fácil, mais tranquilo? Na grande maioria das vezes, essa resposta vai vir como um não fazer: não exigir, não julgar, não pressionar, não querer que seja diferente, não conflitar. Já é um mundo inteiro para alguém que está imerso em demandas emocionais profundas, que podem consumir muito da energia e da vitalidade.

4. Luto não tem prazo

O comportamento anterior se relaciona bastante com o fato de que, culturalmente, o luto parece ter um prazo: depois de algum tempo, o correto é que o enlutado tenha superado e seguido em frente.

Dentro dessa lógica, ainda que dois ou três meses após o acontecido, as pessoas mais próximas, de convivência corriqueira, sentem que é hora de atravessar o assunto e retomam as pautas diárias como se nada tivesse acontecido. É como se, para os outros em volta, a morte fosse como um aniversário: comparecemos, abraçamos, damos parabéns e presente, e no dia seguinte, a vida segue. Enquanto isso, quem perdeu vive um sabático interno: segue em processo, lento e elaborado, muitas vezes bastante solitário.

Aqui, é importante tentar vislumbrar a complexidade da jornada do outro e, da forma que for possível, respeitá-la pelo tempo que for.

5. Presença compassiva

Uma presença bondosa, amorosa e compassiva define o melhor apoio possível para alguém querido que está em luto e abarca todos os pontos anteriores.

É difícil? Muito.

Cuidar de alguém em luto exige a presença que precisamos praticar na vida. Presente de fato, para conseguir olhar para o outro e saber qual a melhor forma de agir, o que dizer. Compassiva, que se conecta com a dor do outro sem pena nem dó, mas com ternura e vontade de agir para confortá-lo e deixá-lo ser, muitas vezes de jeitos tortos e confusos. Bondosa e amorosa, no sentido de que exige que saiamos da nossa zona de conforto, do nosso próprio umbigo, dos nossos desejos e vontades e abramos espaço para que aquela pessoa consiga existir e processar a perda sem demandas adicionais, sem julgamentos, até, enfim, se reorganizar.

6. A melhor das práticas para apoiar alguém em luto (ou se apoiar)

Quando perdi meu pai, levantava todos os dias como se acordasse de um pesadelo. Tinha de me relembrar, a cada vez que saia da cama e começava a manhã, de que ele havia morrido. Lidei, também, com a dificuldade gerada pelo cansaço da maratona dos últimos meses de hospital e UTI e com o trauma que algumas cenas de dor e sofrimento dele me causaram.

Nesse processo, tive problemas com o meu companheiro: ele acordava, todos os dias, ignorando o meu luto.

Nos afastamos bastante até termos a primeira conversa aberta sobre as dificuldades dele e foi quando ele me disse, com franqueza, que simplesmente não sabia o que fazer. Ali, vi que ele realmente não fazia ideia do que eu estava sentindo e que teríamos que encontrar um jeito de nos conectarmos de forma benéfica por meio da dor.

Depois de conversar com algumas mulheres que são referência para mim, sugeri que ele contemplasse a morte mais de perto.

"Contemple o fato de que seu pai, sua mãe, podem morrer a qualquer momento. Medite imaginando que algo grave aconteceu, e um deles se foi, depois de muito sofrimento físico e emocional. Se imagine nessa situação, de perda. Agora se imagine acordando todos os dias, com imagens dele ou dela sofrendo, se despedindo. Do enterro, da falta. Olhe para você mesmo nessa situação, em meditação. O que você sente por você? Pronto. Não precisa fazer nada. Apenas tente tocar a finitude, o quão profunda, ampla e potente ela é, e decante a compaixão que brota quando você se enxerga nessa circunstância. Foi meu pai, mas poderia ser o seu. Poderia ser qualquer um de nós. Se você, por minutos, fechar os olhos e contemplar isso, não vai precisar fazer nada por mim. Tenho certeza de que vai agir do modo mais bondoso e acolhedor que puder agir com relação a minha tristeza."

Essa é a melhor prática possível para abraçar, ainda que simbolicamente, alguém querido em luto: tocar a experiência da morte a partir de uma prática contemplativa, da sua perspectiva e experiência individual de perda. Não vai ser exatamente igual à experiência do outro, claro. Mas, imediatamente, nos traz para um espaço compartilhado de humanidade e, a partir daí, naturalmente, brota em nós o melhor que podemos oferecer.


Anna Haddad é fundadora da Comum. Trabalha com projetos que envolvem gênero e educação, principalmente no campo social, e escreve sobre o assunto por aí.


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Anna Haddad

Anna Haddad é advogada de formação e jornalista de coração. Escreve para vários veículos e no Medium sobre gênero, novos negócios e educação. Acredita no poder das pessoas e em novas estruturas, mais horizontais e humanas. Faz consultorias ligadas a gênero, feminismo, construção de comunidades e negócios colaborativos.