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#24 [relato] Crianças e adolescentes: como sensibilizá-los para a impermanência?

Meu filho tinha três anos quando percebeu que faltava um pai em sua vida. Bastou entrar para a escola e comparar sua rotina com a dos coleguinhas. A pergunta veio logo, num dia depois da aula. "Cadê meu pai?", ele indagou, sem rodeios. Respondi com a mesma objetividade: "Seu pai morreu, filho. Antes de você nascer. Ele não queria, mas a gente não manda nessa parte.”  Francisco quis saber como foi. “O coração dele parou de repente e ele caiu.”

Ele se deitou no chão, fazendo uma espécie de reconstituição da cena que não presenciou. Acenei positivamente, ele se calou por um tempo e, no fim do dia, voltou ao assunto: “Eu tô muito bravo que meu pai tá morrido.” Respirei aliviada por ele ter expressado sua indignação. Deixei claro que seu sentimento era natural e justo. Onde já se viu morrer antes do nascimento do filho? “Coisas da vida, filho. Não há nada que possamos fazer.”

Confesso que o questionamento aconteceu antes mesmo que eu pensasse em me preparar para ele. Eu estava mais ocupada em lidar com a minha própria frustração de ter uma família bem menor que a planejada. Sem ensaiar, acabei tomando o caminho mais honesto para falar sobre uma verdade dura da vida: ela tem fim.

Desde então, Francisco abriu os olhos para outras faltas também doídas. Meus pais, seus avós maternos, se foram precocemente, sem tempo para conhecer sequer o pai do Francisco enquanto namorávamos. As fotos espalhadas pela casa começaram a ganhar a atenção dele e assim essas pessoas queridas se tornavam mais presentes em nosso dia a dia — morrer não é ir embora, e sim mudar-se de lugar, passar a existir dentro de quem fica.

Mais adiante, a psicóloga identificou no Francisco um tremendo medo de perda. Chorei por isso e senti uma certa culpa, até atribuir ao fato sua dimensão apropriada. Como poderia ser diferente? Teria sido bom construir um conto de fadas para uma história cheia de buracos?

A resposta é não, estou certa disso. O mais valioso que podemos mostrar aos nossos filhos é a nossa humanidade. Francisco teve de lidar bem cedo com a palavra frustração, o que é bastante educativo. E confrontou aquilo que muitas vezes nós mesmos precisamos aprender: a vulnerabilidade como condição da vida. O auge do nosso amadurecimento coincide com o auge da nossa fragilidade, o momento mais próximo do fim. É o desenho da vida, que de alguma forma vamos aprendendo a aceitar.

Mais importante que "se preparar" para a finitude talvez seja aprender a viver lado a lado com ela, enxergando nessa condição um sentido maior para se viver de forma plena. Um aprendizado que passa por uma compreensão fundamental: a de que não temos controle sobre os acontecimentos. Mas, se não posso mudar as coisas, posso ao menos mudar minha forma de viver algumas delas. A vida não é o que nos acontece, é o que fazemos do que nos acontece. No vocabulário de Francisco, a palavra morte fica pertinho da palavra pai. É sua história, foi preciso lidar bem cedo com ela.

O que me leva a pensar que a hora certa para falar com uma criança sobre a finitude da vida é uma só: o momento em que sua história pedir.

Cedo ou tarde, toda criança confronta essa realidade. Ou pelo menos deveria. Porque falar naturalmente sobre a impermanência é fundamental para encontrar uma forma saudável de existir.

Olhar de Beatriz Xavier

Olhar de Beatriz Xavier

De lá pra cá, Francisco vivenciou outros lutos. Tive dois casamentos e outros namoros que também afetaram sua vida. Algumas vezes, foi o colo dele que busquei — e ele foi grande para me acolher. Choros profundos me ajudaram a sorrir de novo (e de maneira sincera), fins se tornaram recomeços. Ao ver a mãe cair e levantar sem desistir da vida, de si, de nós, Francisco aprendeu que os sofrimentos fazem parte da trajetória. Aprendeu com atos, mais contundentes que as palavras.

Evitamos falar com uma criança sobre a impermanência, imaginando que para ela o drama será o mesmo que passamos a vida cultivando. Ao escolher abordar o assunto de maneira aberta e franca, podemos nos surpreender com a simplicidade e pureza do seu olhar.

O que a vida quer da gente é coragem, ensina Guimarães Rosa. E também um pouco de humor, por que não? As próprias crianças podem nos ensinar isso. "Um dia vamos morrer", filosofa Charlie Brown olhando para o horizonte. Ao que o sábio amigo Snoopy responde: "Mas todos os outros dias nós vamos viver". Uma simples tirinha trazendo uma dica preciosa que insistimos em ignorar: a arte de levar a vida menos a sério. Crescer não precisa ser perder o olhar de criança.


Cris Guerra é comunicadora e escritora. Sua obra de estreia, Para Francisco, está sendo adaptada para o cinema. Também é colunista de várias publicações e viaja pelo Brasil ministrando palestras comportamentais.


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