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#9 [texto] Um olhar para dentro: por que evitamos as mortes?

“Ah, este foi o melhor funeral da minha vida”.

Sonho com o dia em que frases como essa serão corriqueiras. A palavra funeral não soará estranha e antiquada como hoje — e no dia em que meu sonho se tornar realidade, talvez ela até tenha encontrado sinônimos mais simpáticos. Na verdade, pouco importa que nome as cerimônias de despedida tenham. O mais importante é que elas sejam carregadas de significado e sirvam de ponto de partida para lutos mais saudáveis. Tenho um cemitério (para ser mais exata, um grupo funerário: dois cemitérios, um crematório, um plano funerário) e sei, por conta de meus anos de experiência com as famílias que passaram por uma perda, o quanto um velório e um funeral bem realizados ajudam a encaminhar a experiência do luto numa direção positivamente transformadora.

Para transmutarmos o significado de perda — ou, pelo menos, jogar mais lucidez em seu conceito —, é preciso, antes de tudo, lançarmos um olhar para nosso mundo interno. Por que, afinal, evitamos as mortes? 

foto de Beatriz Xavier (@biarxavier, no Instagram), para nossa trilha de Finitude

foto de Beatriz Xavier (@biarxavier, no Instagram), para nossa trilha de Finitude

As pessoas detestam funerais. Faz sentido que seja assim num tempo em que a morte e a tristeza perderam o direito de existir. No tempo das nossas avós, quando partos e velórios eram realizados em casa, as crianças eram retiradas quando havia um parto — porque de alguma forma o nascimento remetia ao tabu da época, que era a sexualidade — e essas mesmas crianças eram autorizadas a participar dos velórios — porque naquele tempo a morte ainda não era assunto velado. Hoje, há uma clara inversão: partir deste mundo é tema mais polêmico do que chegar a ele. Em nossa época, o luto é um constrangimento tanto para quem o vive quanto para quem convive com o enlutado. Por menor que seja a tristeza, ela é convocada a sair de cena com a ajuda de remédios e terapias. Velhice virou palavrão. Na tentativa de “suavizar” o envelhecer buscamos termos — como melhor idade ou maturidade — para definir essa fase tão natural da vida.

São os vínculos líquidos, frágeis, que mantemos não só nas relações com as pessoas, mas também em relação ao tempo — a sociedade ocidental vive uma espécie de presente perpétuo. Não há nem a visão de um futuro nem a evocação de um passado. Somos uma sociedade hedonista que quer prazer o tempo todo, no aqui e agora.

Com o aumento constante da expectativa de vida, a morte parece cada vez mais distante. Todas as conquistas que a tecnologia nos trouxe foram, aos poucos, criando em nós a impressão de que um dia os magos da medicina, ou aqueles do Vale do Silício, conseguirão de vez nos proteger do fim. Uma das empresas mais poderosas do mundo — o Google! — realiza desde 2013 estudos na área de saúde para a instalação de micro-robôs em nosso organismo que nos ajudariam a detectar problemas muito antes deles se tornarem graves. Esses robozinhos nos levariam a estabelecer com a medicina uma relação que teria mais a ver com aperfeiçoar o corpo do que com “consertá-lo” — aliás, não seria mais preciso consertá-lo, pois os tais mini agentes de saúde não permitiriam que nada estragasse.

Essa é apenas uma das áreas de pesquisa da Calico, a empresa do Google dedicada a nos tornar super-humanos. E a Calico não está sozinha nessa empreitada, inúmeras outras companhias do Vale do Silício estão na corrida pela vida eterna. O bilionário Peter Thiel, um dos criadores da tecnologia de pagamento PayPal, é um dos que acredita que o envelhecimento é uma “condição médica”. Quem inventou essa frase foram os fundadores da Fundação Methuselah, responsável por um prêmio que busca estimular cientistas ao redor do mundo a se engajarem na missão de descobrir a “cura” para a morte. Peter Thiel diz que quer viver pelo menos 120 anos de idade e já gastou muito dinheiro investindo em 15 empresas dedicadas ao desafio de combater a mortalidade.

Se pararmos para pensar que a morte é a negação da teoria de Darwin — segundo a qual cada espécie vai se aperfeiçoando sempre — parece lógico que um dia chegaremos à superação dela. Mas ainda não chegamos lá e eu, pessoalmente, nem acho que a eternidade seja uma boa ideia (isso, no entanto, é assunto para outro artigo; o objetivo deste texto aqui é jogar luz sobre as emoções que hoje estão em jogo quando o assunto é morte e mostrar a importância das despedidas bem realizadas.)

Cena da série Orange is the New Black, série que aborda, entre outras questões importantíssimas, a morte de forma nua e crua

Cena da série Orange is the New Black, série que aborda, entre outras questões importantíssimas, a morte de forma nua e crua

As pessoas detestam funerais. Obviamente que passar por um não representa uma experiência fácil ou romântica, mas isso tem a ver também com o fato de que os funerais não souberam se reinventar. Num mundo que muda numa velocidade cada vez mais frenética, chega a ser inacreditável que os rituais de morte venham mantendo a mesma estética, as mesmas narrativas e as mesmas linguagens de sempre. Deveríamos sair dos funerais melhor do que entramos neles. Eles deveriam nos ajudar a criar significados para a perda e inspirar nossas emoções em direções mais positivas. No entanto, o que fazem, hoje, é justamente o contrário disso.

Uma pesquisa realizada nos Estados Unidos em 2010 pela FAMIC Funeral & Memorial Information Council (FAMIC) mostrou que as pessoas acham a experiência de ir a velórios e enterros extremamente estressante e desagradável. As 80 pessoas entrevistadas descreveram esses eventos com adjetivos como “frio”, “sem vida”, “escuro”, “sufocante”, “encarcerador” e “estéril”.  Elas destacaram o fato de que a pessoa falecida — aquela a quem a despedida se dedica – parece estar sempre em segundo plano, embora a rigor esteja no centro dos acontecimentos.

Nos funerais, o que fica em primeiro plano é um enorme vazio e a sensação coletiva de não saber como se comportar. Quando a pergunta foi “como você se sente em um funeral?” as respostas giraram em torno de “solitário”, “controlado” e “constrangido”. Os analistas do estudo concluíram que a principal mensagem dos velórios é a de que chegamos ao final da história de quem morreu. Esse THE END é muito assustador, principalmente num tempo tão narcisista quanto o nosso. A morte, no entanto, não precisa ser apenas ponto final. Ela é também ponto de partida para uma nova história, a ser contada pelas pessoas que ficam. Aqueles que amamos permanecem vivos em nós e somos guardiões de suas memórias — ou seja, de sua vida. Em vez de apenas nos encher de morte, os funerais deveriam celebrar o que foi cada vida, sublinhando sua singularidade e desfazendo a névoa de constrangimento em torno da partida.

“Uma boa cerimônia de despedida conta não só a história de vida do falecido mas também a história de sua morte”, diz Glenda Stansbury, uma das criadoras da InSight Institute, empresa sediada nos Estados Unidos que treina e disponibiliza para contratação celebrantes capazes de realizar cerimônias personalizadas e inspiradoras. Quando começou esse trabalho, Glenda tinha em mente que o público que se interessaria pelos serviços de um cerimonialista funerário seriam pessoas idosas ou pacientes em estado terminal. No entanto, esses profissionais são particularmente procurados em situações dramáticas — acidentes, suicídios, assassinatos — justamente porque é diante dessas condições que as pessoas mais precisam de auxílio para criar uma narrativa em torno da morte. “Nesses casos, o celebrante ajuda a tirar o elefante da sala, declarando com delicadeza — mas em alto e bom som — o que aconteceu. É importante também que ele deixe claro que é natural que perdas assim gerem sentimentos confusos e contraditórios, como culpa, raiva e negação”, diz ela. Fazendo-se valer do que Glenda chama de “verdade amorosa”, os celebrantes fúnebres autorizam as pessoas a sentirem sua dor e encorajam os participantes de cada funeral a encontrarem tempo e lugar para o processo de luto. Glenda e o time da InSight são protagonistas de um grande movimento, com iniciativas em todo o mundo, que pretende ressignificar o luto. Um movimento do qual eu me orgulho de fazer parte.

Luto não é sinônimo de dor. O luto é justamente a expressão da dor (que existe independentemente de ser demonstrada ou não). Desde sempre, é isso que nós seres humanos fazemos: buscamos refúgio na linguagem para dar sentido às coisas. Por isso é tão importante que o luto tenha espaço e tempo para acontecer.

O estudo “Cartografia da Morte”, realizado pelo Sindicato dos Cemitérios e Crematórios Particulares do Brasil (Sincep) mostrou que se a morte é tristeza, dor, saudade, medo, solidão, o luto deve ser amadurecimento, e para que haja amadurecimento todos esses sentimentos devem servir para algum aprendizado, alguma transformação.

O luto pode também, se bem feito, instaurar confiança, pois sobreviver a uma experiência como essa, de profunda dor, é um indicador da força interna que se tem. O luto deve trazer vontade, ou seja, plantar na pessoa o desejo de viver mais e melhor. E por fim deve inaugurar ou reforçar na pessoa a empatia, já que sentir-se acolhido e reconhecido na dor pode servir como um incentivo para fazer o mesmo pelos outros.

A morte é capaz de reescrever a vida. A experiência da perda pode ser uma experiência TRANSFORMADORA, promovendo AMADURECIMENTO, CONFIANÇA, VONTADE e EMPATIA. Falar sobre a morte é falar sobre a vida, pois vida e morte são como os dois lados de um filme fotográfico, impossíveis de separar. Viver e morrer são duas forças aparentemente opostas mas que são, na verdade, complementares. Que a vida seja boa... e que a morte possa ser boa também.


Gisela Adissi é empreendedora fúnebre, presidente do grupo Primaveras, presidente do Sincep (Sindicato dos Cemitérios e Crematórios Particulares do Brasil) e co-fundadora do projeto “Vamos Falar Sobre o Luto?”

 


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