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Você prefere gozar ou ser magra?

Dia desses eu fui mexer em umas caixas intactas que sobraram da minha mudança e para minha alegria & surpresa encontrei fotografias antigas. Eu amo fotografias antigas e apesar de ser uma pessoa ausente de nostalgia, fiquei feliz em rever amigos da época da escola, da militância no movimento estudantil, e da faculdade.

Fui tirando fotos da foto com o celular e mandando para os grupos de whatsapp. Ríamos muito, relembrávamos, e nesse encontrinho virtual ficamos, eu e meus amigos mais próximos, conectados. Tivemos alguns daqueles raros minutos de afeto que deram aquela pausa necessária no nosso mondo cane.

“Olha o cabelo do Fernando” “Mario, você até que era bonitinho” “Que roupa desgraçada é essa?” “Lembra que nesse dia fomos no Bob’s da Senador Dantas e…” Mas entre todas as frases a que mais rolava entre as garotas era:

Como eu era magra. Como eu engordei.


E variações disso. Quinze, vinte anos anos atrás, todas nós, essas adolescentes e jovens já odiávamos nossos corpos. Agora mulheres adultas, bem sucedidas, bonitas e interessantes, adivinhem só: continuamos odiando nossos corpos.

Cara, é tão violento e tão absorvente, que eu não conheço uma mulher sequer do meu convívio próximo que não tenha alguma crise parecida. Esses dias uma amiga no Facebook que perdeu 17Kg estava sofrendo pois a nutricionista queria que ela perdesse mais 8Kg. Ainda essa semana uma amiga minha absolutamente maravilhosa comparou o seu corpo a uma chaleira. No parquinho levando a Liz para brincar, eu conversava com uma mãe que ao me ver chegando de bike perguntou se eu estava “me preparando para o verão” e que ela “deveria fazer o mesmo”.

Há muitos anos eu trabalho na indústria vital do audiovisual brasileiro e convivo com muitos figurinistas, maquiadores, atores, atrizes, apresentadores. Em média para um programa diário, sem muita firula, uma atriz ou apresentadora fica fucking duas horas fazendo cabelo, maquiagem e se vestindo (um rapaz uma meia hora se tanto). Como que a gente vai querer se comparar com alguém que está sendo literalmente produzido para não ter falhas e para funcionar como um modelo aspiracional? É humanamente impossível ser ou se parecer diariamente com alguém que aparece na TV ou no cinema. Nem vou falar do mercado editorial, em que o photoshop cria corpos biologicamente impossíveis que a gente acaba acreditando, tal qual uma criança crédula acredita no papai noel.

Acho que não existe mecanismo social remotamente parecido que ataque os homens dessa maneira. Tenho amigas que acordam e o primeiro pensamento que têm é sobre o que elas não podem comer naquele dia, e dormem pensando no que elas comeram de errado. Isso não é saudável, isso não é certo, isso não é maneiro, isso é uma espécie de escravidão. Um controle social completamente eficiente.

“Uma cultura focada na magreza feminina não revela uma obsessão com a beleza feminina. É uma obsessão sobre a obediência feminina. Fazer dietas é o sedativo político mais potente na história das mulheres; uma população passivamente insana pode ser controlada” 


Quando eu li essa frase da Naomi Wolf foi uma espécie de revelação. Fiquei pensando nisso. Nós mulheres gastamos muito tempo de nossas vidas úteis e produtivas odiando nossas barrigas, nossos peitos, nossas bundas, nossos umbigos, nossos cotovelos e pescoços. Eu, que sou uma pessoa com a auto estima no lugar vez por outra, entro em transe paranóico de que sou completamente repulsiva, horrenda, e que se eu sair à luz entrarei em combustão espontânea em castigo divino por expor a minha feiúra diante do sol. E que, obviamente, por isso, não mereço e não serei amada (por um homem, claro). E aí eu tenho que parar, respirar e pensar: eu sou uma mulher bonita. eu não preciso ser bonita. eu sou uma mulher normal. eu não preciso ser uma mulher normal e está tudo bem, mesmo se não estiver tudo bem.

Um dia se quantificassem o tempo que a gente gasta se lamentando por não sermos bonitas o suficiente aposto que não falaríamos de horas, mas falaríamos de anos em que estávamos sendo assaltadas pelos mais horríveis pensamentos a respeito de nós mesmas. Tempo que poderíamos estar produzindo, amando, rindo, gozando, ganhando o Nobel.

A gente não prefere conhecer nossos corpos e gozar e ganhar o Nobel do que pensar se o molho “ranch” tem menos calorias que o “honey mustard”?

Bom, eu resolvi qual é a minha prioridade, e faço o esforço consciente, diário, revolucionário e árduo de permanecer me amando independente do que o mundo diga para mim que é adequado. É muito difícil, eu fui ensinada que devo ser bonita, ou pelo menos morrer tentando, que essa é uma das minhas três funções no mundo (o casamento e a maternidade são as outras duas) e que devo cumprí-la ou terei falhado como mulher.

Eu prefiro não falhar como ser humano e continuar tentando ser alguém de quem eu me orgulho e contando para as minhas amigas o quanto elas são completamente incríveis. E que isso não tenha a ver com o meu peso. Nem com o seu. Nem com o de ninguém.


Texto publicado originalmente no Medium


Renata Corrêa é roteirista, escritora, feminista e tijucana. Fale com ela no TwitterBlog e Facebook

Renata Corrêa

Renata Corrêa (Rio de Janeiro, 1982) é roteirista, escritora, feminista e tijucana. Twitter: @letrapreta