`

#2 O mito do amor romântico  —  a industrialização da felicidade

99065bb352fbbfb424ccac9aea1857de.jpg

O mito do amor romântico  —  a industrialização da felicidade

Numa das nossas viagens pro sítio, depois de um almoço farto e papos rasos, minha avó comentava os relacionamentos da família:

“Se sua mãe tivesse lutado mais pelo casamento, acho que ela e seu pai estariam juntos até hoje. A sua tia Tereza, por exemplo. Sabia que o marido tinha uns casos por aí. Mas a partir do momento que ele entrava em casa, era marido dela. Nada disso fazia diferença”.

“Pois a senhora acha que se tia Tereza estivesse dando pra meia Niterói, tio Max teria aliviado a barra dela?” —  eu respondi.

“Claro que não”, minha avó assumiu, ponderando. Eu, sabendo que o casamento dos meus pais era irrecuperável e 100% cansada desse papo de mito do amor romântico, continuei:

“Pois é. Eu acho isso uma grande merda. Esse discurso de que a mulher tem de passar por cima do que for pra manter um casamento sendo que o homem está pouco se lixando. E aí aconteceu o quê? Tia Tereza envelheceu rápido e ficou deprimida. Todo mundo dizia que ela não se cuidava. Teve câncer e morreu. Deve ter sido de puro desgosto”.

O conflito geracional ali era claro. Minha vó foi criada em tempos nos quais o casamento ainda era a grande conquista da vida de uma mulher. Sua irmã, quando se separou, foi vista com maus olhos e destratada, inclusive pela própria família. A preservação do matrimônio cabia exclusivamente à mulher  —  ao homem cabia trazer o sustento pra casa, não importando sua conduta com a família ou lealdade com a esposa.

Não que muita coisa tenha mudado de lá pra cá. Quando eu estava sofrendo abuso físico e psicológico por parte de um ex-namorado, ouvi de minha então sogra que se eu não respondesse, se eu ficasse quieta quando ele estava nervoso, talvez ele não batesse em mim. Que ele era um homem maravilhoso e o problema era eu, que não sabia ficar calada. Eu, que tinha um “passado sexual” indigno, motivo pelo qual ele era tão ciumento.

Eu lutei muito por aquela relação. Apesar de ver desde o início seus sinais problemáticos e suas várias dinâmicas abusivas, eu tentei. Dei meu melhor. Dei meu tempo, meu dinheiro, meu psicológico, mergulhei como uma ensandecida num oceano de fel. Porque apesar de ser feminista, libertária, esclarecida, graduada — e ter noção dos meus privilégios —  ainda estava gravado na minha mente que eu sou mulher e que, por isso, meu dever é me sacrificar pelo meu relacionamento.

O amor romântico aprisiona e oprime principalmente mulheres heterossexuais — pelas relações de poder —, mas não só. Relacionamentos homoafetivos não estão a salvo dessa falácia.

Infelizmente, ainda somos educados para acreditar na promessa de que um dia encontraremos o amor verdadeiro, que é uma pessoa que vai suprir absolutamente todas as nossas necessidades e com quem ficaremos para todo o sempre, em uma felicidade absoluta e inigualável. A alma gêmea, o amor maior, a tampa da panela. Este é o mito do amor romântico, o mesmo que nos vendem nos contos da Disney.

E esse mito é um dos muitos elos da corrente patriarcal que nos segura para sempre na mesma posição. É claro que ele é uma promessa falsa que afeta ambos os gêneros. Mas as dinâmicas dessas promessas para homens e mulheres são bastante diferentes, especialmente quando o mito do amor romântico se amarra no casamento.

Ele arrasta consigo diversos ideais patriarcais.

Sabe aquela distinção machista de “mulher pra comer” e “mulher pra casar”? O homem é educado para “curtir a vida” e só posteriormente se “recolher” ao casamento com sua alma gêmea —  que, por sua vez, tem de vir na roupagem de mulher inocente, casta, passiva e submissa. A famosa bela, recatada e do lar.

A “mulher pra casar” nada mais é do que um substituto da figura materna, com a vantagem do sexo. Ela vai cuidar, lavar, passar, cozinhar, arrumar, limpar, satisfazer, paparicar e louvar seu adorado marido acima de tudo. Como disse Beauvoir, a diferença entre a prostituição e o casamento — nesses termos tão desiguais — é apenas a duração do contrato.

Mas as consequências do mito do amor romântico são muito piores para as mulheres. A mulher sente que deve ser a tal mulher pra casar, enquanto o homem está preocupado só em ser ele mesmo. Como já dito no primeiro texto dessa trilha, a mulher ideal deve exalar feminilidade, mantendo sua aparência impecável e sua voz silenciosa, se tornando uma criatura que pouco ameaça a masculinidade.

Ela deve se sacrificar, colocar em segundo lugar todas as suas realizações pessoais porque o real indicador de seu sucesso será seu casamento. E uma mulher que aprende que deve preservar seu casamento acima de tudo, se acostuma rápida e facilmente com relações abusivas, empregos medíocres, frustração sexual, sapos engolidos além da conta e situações de infelicidade no geral.

Ninguém queria saber se minha Tia Teresa se sentia feliz, se a autoestima dela era boa, se ela se realizou profissionalmente, se ela tinha sonhos. O que importava é que ela passava pano nas traições de seu marido. Essa era a mulher bem-sucedida.

Ora, duas pessoas entram numa relação esperando que ela seja a grande panaceia de suas vidas. Uma delas é um homem, criado para acreditar que mulheres estão à seu dispor, que acha que sexo é exatamente da forma que se vê em filmes pornográficos, cuja masculinidade se pauta acima de tudo em imaturidade emocional, é socialmente privilegiado e tem poucos instrumentos de diálogo. A outra pessoa é uma mulher, educada nas crenças de que deve acima de tudo satisfazer seu marido, acostumada às práticas de abuso e silenciamento, que acha que o sucesso da relação depende majoritária/totalmente dela, afinal de contas “homem é assim mesmo”.

É uma receita de fracasso. Mas pior que isso é a receita pra uma mulher autonegligente, insegura e sem nenhuma autonomia emocional. É uma mulher que tem como fundação de sua autoconfiança o relacionamento em que está. Só que a nossa autoconfiança deve ser primariamente pautada em nós mesmas. Não é justo e nem saudável que homens tenham completa autonomia sobre si enquanto nós somos reduzidas a aquilo que somos para eles.

Ter alguém ao lado que nos respeita, apoia, dá segurança e nos estimula a evoluir, é algo precioso. Mas é imprescindível não depositar sobre nossos companheiros a responsabilidade total da nossa felicidade; ou ainda, idealizar a pessoa ou o relacionamento, gerando frustração constante porque tudo não se mostra perfeito.

O mito do amor romântico diz que a pessoa ideal vai suprir todas as suas necessidades, o que é um bocado absurdo: não dá pra exigir que o outro, além de cuidar de si, cuide integralmente de você. É um jeito de se relacionar que produz indivíduos infelizes e dependentes, em vez de parceiros.

Nesse sentido, construir uma comunidade forte em torno de si é uma estratégia que trará mais laços, entre pessoas com competências diferentes. Encontrar suporte em amizades e familiares é algo que pulveriza as necessidades emocionais, tornando a convivência mais fácil e leve.

Relacionamentos românticos são sempre complicados; é importante não sobrecarregá-los com expectativas nada realistas. Ademais, este mito colabora para que a gente espere demais do outro, em vez de avaliar nossas próprias atitudes. É importante ter espaço, dentro de uma relação amorosa, para a autodescoberta. O amor romântico parte do princípio que relações devem ser sempre de uma certa maneira, encaixotando as pessoas num modelo que impede mudanças necessárias e florescimento pessoal.

É mais importante construir um relacionamento que traga conforto e bem estar para os envolvidos do que buscar se adaptar a um modelo irrealista. Sempre esteja atenta às suas necessidades antes de se preocupar com o que estão pensando da sua relação ou como as pessoas acham que ela deveria ser. Ela deve ser boa pra quem está dentro, e nada além disso. Se acabar, também não quer dizer que não deu certo: deu certo enquanto durou.

Pessoas mudam de emprego, de casa, de país quando o que elas têm no momento deixa de fazer sentido. Pode ser que seu parceiro descubra que quer ser bancário em Miami enquanto você quer entrar pro Médicos Sem Fronteiras. Isso não faz de nenhum dos dois alguém pior, apenas significa que a jornada juntos se encerrou ali. Que sentido faz a gente achar que deve ficar com uma única pessoa a vida toda, tão mutáveis que somos? E por que alguém que foi casado uma vez só é melhor do que alguém que se casou cinco vezes?

É relevante lembrar que esse modelo de relacionamento felizes-para-sempre, cuja paixão nunca se esgota, também prejudica pessoas em relacionamentos homoafetivos. Da mesma forma que se constrói estereótipos a respeito das relações heterossexuais, relações homoafetivas têm seus próprios paradigmas a serem quebrados.

A heteronormatividade também as afeta — algo que podemos verificar claramente quando se fala, por exemplo, de “ativo” e “passivo”, ou lésbicas “butch” e lésbicas “femme”. Frequentemente, adapta-se à homossexualidade certos conceitos característicos do preconceito heteronormativo: a penetração compulsória, a necessidade de polarizar dois iguais para que sejam vistos como diferentes. É tão importante quanto, para a população LGBT, se desfazer dessas ideias que só fazem aprisionar nossas relações amorosas.

Assim como a feminilidade, a monogamia, a romantização do ciúme e a heteronormatividade, o mito do amor romântico é apenas mais um conceito que prejudica as relações humanas, e, em se tratando da cultura misógina na qual vivemos, tem efeitos consideravelmente piores na vida das mulheres. E assim como o restante, é mais um que pretendemos desconstruir.


Nossa sugestão de prática:

Estamos cansadas de ler reflexões sobre relações e o amor romântico. Mas é bem mais difícil acessar o que dele está em nós de um jeito opressor. Não precisamos negá-lo a todo custo, extirpar ou necessariamente trucar tudo o que vem dele. Não é esse o ponto.

O exercício é pesquisar, dentro de nós e em tudo o que nos rodeia, quais são as imposições que o amor romântico criou e, delas, quais nos aprisionam e não nos servem, e quais queremos realmente acolher.

Então, depois de ler o texto com atenção, tome 5 minutos para fazer esse exercício. Se puder, vá para algum lugar confortável, onde você consiga se concentrar de forma relaxada. Leve um caderno ou uma folha, e uma caneta.

Agora, pense um pouco no que, para você, é uma relação bonita, digna de reconhecimento, aplausos e parabenizações. Pense em referências de casais que você guarda com você. No papel, escreva palavras, expressões e, principalmente, desenhe elementos que representem essa relação ideal. Como ela é? Como é a mulher (ou mulheres) nela? Como é o homem nela? Por quais ritos, festas, celebrações essa relação passou? De que forma as famílias estavam envolvidas na relação? Existe uma criança? Por quanto tempo o casal está ou deve ficar junto?

Cave fundo. Também, assuma para si mesma as coisas que estão aí dentro, por mais difícil que elas sejam. Depois, dê uma olhada panorâmica para tudo o que brotou na sua mente e foi para o papel. Respire fundo e abra espaço. Depois, se pergunte em voz alta: o que, disso tudo, é meu, genuinamente meu? Do que, disso tudo, realmente preciso para ser feliz? O que só está aqui porque alguém, um dia, me disse que era o jeito certo?

Não precisa encontrar respostas certeiras e prontas. Estamos num processo, e esse é o início da jornada. Questionar é o primeiro passo.

Seguimos juntas, aqui e no fórum. Vamos conversando por lá, sempre.


Débora Nisenbaum é formada em publicidade — e ainda não sabe o que fazer com isso. É colaboradora na www.ovelhamag.com.