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#16 Relacionamentos abusivos: como encontrar espaços de reflexão e transformação?

Dos 20 aos 23 anos, vivi um relacionamento abusivo. O que de início parecia um destempero, mostrou-se, ao final, um gravíssimo padrão de comportamento do meu parceiro. Quando aos 23, numa briga que culminou em término, ele me enforcou até que eu ficasse sem ar, juntei minhas coisas sem olhar para trás.

Não fora a primeira vez que ele agira assim. Já tinha recebido empurrões, mordidas, agressões verbais, violência psicológica e até cusparadas na cara.

Durante o primeiro ano de separação, quis voltar. Depois, quando percebi a violência que tinha passado, me culpei. Como eu, tão instruída, tão privilegiada, poderia ter me deixado levar assim?

Nesse vídeo, a psicóloga Ciça Maia nos diz que qualquer mulher está sujeita a um relacionamento abusivo. Pode ser uma sentença devastadora — e costuma ser —, mas a pergunta que fica é: Como podemos lidar com isso?

Hoje, aos 28, o fantasma, às vezes, ainda me visita.

Semana passada, jantei com uma amiga que está processando o ex-namorado. Lei Maria da Penha. Ele a chama de louca, diz que nunca a agrediu. Na frente da juíza, alega difamação e afirma que minha amiga faz tudo isso porque não superou o fim.

Antes do meu prato chegar, meu estômago já doía. Com dor, confessei: “Sabe, eu me pergunto com frequência, quando lembro do meu caso, se eu não sou a louca mesmo. Se tudo de fato aconteceu. Se eu inventei”.

Quando esse tipo de pensamento me pega de surpresa, entristeço. Fico nesse sentimento por alguns instantes e aí entendo de onde ele vem. Então, me acolho. Lembro que fui programada durante uma vida inteira para acreditar que sou culpada, errada, inadequada. Recordo que não, não foi uma invenção. Que sim, que meu companheiro era um cara agressivo, violento e conturbado. E aí tento trazer à mente um lembrete que me permite sair desse vórtice: fazer com que nos sintamos malucas, insanas, desvairadas é uma das principais ferramentas de dominação de pessoas abusadoras.

Depois dos três anos lancinantes desse enlace amoroso, encontrei mais um punhado de homens que me estendiam a mão e me convidavam a dançar a dança dolorosa que é um relacionamento abusivo. Com alguns bailei temporariamente, com outros não arrisquei nem levantar da cadeira. Apesar de nunca mais ter entrado em relações com violência física igual àquela, a verdade é que continuei namorando a possibilidade de me envolver com abusadores e acabei por me engajar em outros abusos — da mesma gravidade, é preciso ressaltar. Mas por quê?

Precisei de uma depressão e de um relacionamento que me diminuía até me reduzir a pó para entender que em vez de tentar mudar as pessoas com quem me envolvia, podia me transformar de modo a não mais aceitar a violência que me propunham — seja de que tipo fosse.

Não entramos em relacionamentos abusivos porque queremos. Não somos culpadas pelas pressões, opressões e agressões que os outros descarregam na gente. Mas podemos entender por quais fendas deixamos que essas pessoas entrem, em que parte da gente permitimos que eles criem morada.

Percorremos um caminho lindo nessa trilha de Autonomia Afetiva. Nela, destrinchamos diretrizes possíveis para que finquemos com força nossa base no chão. Descobrimos crenças e travas internas, percebemos dependências, aprendemos a ver quais são nossos limites e o que podemos nutrir para além de relacionamentos amorosos e também encontramos ferramentas poderosas como a autocompaixão e o autocuidado. E ainda temos mais pela frente. 

Esse é um percurso potente, é uma possibilidade de começarmos uma nova relação com a gente e, a partir daí, com os outros. Se nos cuidamos tanto, se passamos certo tempo nutrindo nosso mundo interno, não vamos deixar que qualquer pessoa entre e bagunce o que estamos cultivando. Temos textos profundos e certeiros aqui na Comum que falam sobre relacionamento abusivo, mas a idéia, nessa trilha, é dar um passo além e entender de que forma podemos nos cuidar e sustentar nossos alicerces internos para que, ao nos depararmos com situações de abuso e violência, consigamos nos manter firmes. 

Isso não significa que não encontraremos mais pessoas abusadoras por aí, mas significa que estaremos mais lúcidas para enxergar o que está acontecendo. Não é sobre se proteger a ponto de não se envolver, não é sobre vestir uma armadura tão dura que nos fechemos em nós mesmas. É, sim, sobre desenvolver um eixo resistente o suficiente que permita que não sejamos podadas, destruídas.

É sobre ser uma base sólida também para as nossas. Não para que olhemos para elas com uma mirada julgadora, mas para que estejamos ali, como suporte, como um lugar que elas possam voltar para serem acolhidas. É ali, uma na outra, que a gente encontra força. É ali que podemos ajudá-la a encontrar as próprias ferramentas, que podemos incentivá-las a se autoapreciarem, a se cuidarem, a olharem para si com autocompaixão e amor. É desse lugar que ela poderá sair revigorada e encontrar a potência necessária para conseguir quebrar o elo das relações nocivas — ou para nem se ligar a elas.

Que a gente possa, um bocado por dia, nutrir o nosso eixo interno e assim ser que nem a haste fina que canta Maria Bethânia: as boas brisas vergam, mas nenhuma espada corta.

Nossa conversa continua no fórum. Espero você por lá.

Sempre juntas.


Gabrielle Estevans é jornalista, editora de conteúdo e coordenadora de projetos com propósito. Nessa trilha, é editora-chefe, participante e caseira.