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#2 [texto] Um olhar histórico para a perda

Perda.

É pronunciar as duas sílabas e pronto: em questão de segundos, uma profusão de sentimentos, emoções, pré-julgamentos e concepções se formam dentro da gente sem o menor aviso prévio. A origem da palavra vem, provavelmente, do latim “perdita” — algo que se deixou de ter —, de “perdere” — de perder, não ter mais. Direto e reto assim, sem juízo de valor algum. Por que, então, ao proferi-la, temos uma bagagem tão negativa embutida em seu significado?

Para entender, talvez devamos trilhar o caminho inverso. O sentimento antes da palavra: por que, quase sempre, ao experienciarmos o fim de uma configuração existente, a sensação que nos toma de assombro é o desconforto?

A perda, como emoção aflitiva, tem uma trajetória histórica. Será que nessa mirada para o passado, conseguimos desenhar o caminho sociocultural do conceito de finitude e traçar um mapa de como lidamos com a morte ao longo dos séculos?

Se analisarmos as diferentes culturas, veremos que os processos e rituais são distintos e que guardam suas peculiaridades, mas que, no enlutamento, somos muito semelhantes — demasiadamente humanos. E se, num olhar ainda mais profundo, olharmos pela perspectiva do recorte de gênero, que informações valiosas podemos extrair daí? Aprendemos a lidar de forma distinta com as perdas durante a história da humanidade, por exemplo? Para entender o presente, é preciso esticar o olhar para o que foi construído lá atrás.

Quando a humanidade dava seus primeiros passos, havia ameaças constantes à sobrevivência. Um filho que fosse separado dos seus pais, por exemplo, estava fadado a morrer mais rapidamente e mesmo adultos que se desgarrassem do grupo corriam esse risco. Ainda hoje, há evidências de que separações e perdas das pessoas que amamos têm efeitos significativos na saúde — chegando, mesmo, a aumentar o índice de mortalidade. Se, à época, os riscos eram físicos, hoje as consequências tendem a ser mais psicológicas — tópico profundamente explorado no livro Amor e Perda: raízes do luto e suas complicações.

E se o enlutamento é um processo natural, presente entre a gente desde os primórdios, suas características, longe de serem fixas, foram se adaptando e transformando conforme as peculiaridades de cada período histórico. No século I, o filósofo romano Sêneca afirmou que os verdadeiros homens poderiam dar-se ao luxo de lamentar a perda de um amigo ou ente querido durante um dia inteiro. Às mulheres, era instituído o luto de um ano — para, diziam, que não chorassem por ainda mais tempo. Nas sociedades pré-industriais, sem tantos estímulos externos, as pessoas costumavam sentir as coisas com mais intensidade. Amor e ódio, vida e morte: os extremos do cotidiano estavam muito mais próximos do mundo.

Com o advento do cristianismo, sofrer o luto passou a ter uma importante função pública destinada ao feminino. Era a elas que pertenciam os corpos dos defuntos e era por elas que, invariavelmente, na tradição ocidental, o luto passava. Eram as pranteadoras, a porta de passagem das emoções que iriam embalar o luto do falecido. No Brasil, difundiu-se com popularidade a profissão de carpideira — mulheres contratadas para chorar em velórios.

 

Painel encontrado no túmulo do cavaleiro Sancho Sánchez Carrillo e sua mulher, Juana. O artista, de nome desconhecido, produziu a obra por volta de 1295. No desenho, há carpideiras, que choram, arrancam os cabelos e machucam seus rostos enquanto vel…

Painel encontrado no túmulo do cavaleiro Sancho Sánchez Carrillo e sua mulher, Juana.
O artista, de nome desconhecido, produziu a obra por volta de 1295. No desenho, há carpideiras, que choram, arrancam os cabelos e machucam seus rostos enquanto velam o morto

A estreita relação entre a mulher e o luto foi se esvaindo conforme a liberação feminina foi ganhando espaço. Já não era, então, função única e exclusiva da mulher chorar por seus mortos. Isso não significa que não tiveram de lidar com perdas de toda a sorte: famílias desmanteladas por conta da guerra, supressão de direitos, abandonos. Também não significa que os recortes de gênero tenham sido, de uma vez, eliminados, quando o assunto é mortes e lutos. No Islamismo, por exemplo, o luto dura três dias para os homens e 130 dias para as mulheres, quando da perda do cônjuge. Nesse período, elas só podem sair de casa em casos de emergência.

 

Perder, para nós, mulheres, é de praxe. E, com tantas faltas pelo caminho, é possível dizer com a qual sofremos mais?

 

A morte não poupa nem o fraco nem o forte

Quando retrocedemos no tempo e estudamos culturas e povos antigos, temos a impressão de que o ser humano sempre abominou a morte e, provavelmente, segundo Elisabeth Kübler-Ross, autora do livro Sobre a morte e o morrer, sempre irá repeli-la em alguma medida.

 

“O processo de luto é semelhante independente da perda. Mas a perda de alguém tem intensidade maior porque a morte é o mistério da vida, envolve questões de transcendência.”

Stela Santin, tutora do CEBB e uma das especialistas entrevistadas para a construção dessa jornada

 

Apesar de ser uma perda concreta e certeira — vai atingir a mim e a você, em algum momento da nossa experiência terrena —, seguimos contornando o assunto como se não fosse com a gente. Mas se é algo que chegará inevitavelmente para todos nós, como podemos ressignificar o sentido da perda e transmutá-lo para que se torne menos pesaroso? Para que, ao tocarmos na palavra, não nos sintamos arremessadas instantaneamente ao sofrimento?

 

“A concretização da perda faz parte, é importante na elaboração. Tem de haver um ritual qualquer ou algo que se construa a partir daquilo para que se inicie o processo de elaboração desse luto.”

Ana Lana, psicoterapeuta, em entrevista para o documentário O segundo sol, projeto independente a vítimas de perda gestacional e neonatal

 

No Japão, a tradicional cerimônia de Noukan, de colocar o cadáver no caixão, já foi feita por familiares e hoje é um serviço terceirizado e impessoal. Para os mais velhos, as pessoas se distanciaram de tal forma da morte que, ao se esquecerem de que…

No Japão, a tradicional cerimônia de Noukan, de colocar o cadáver no caixão, já foi feita por familiares e hoje é um serviço terceirizado e impessoal. Para os mais velhos, as pessoas se distanciaram de tal forma da morte que, ao se esquecerem de que é um acontecimento natural, passam a ter repulsa até das pessoas que trabalham com ela, como no caso do filme A Partida — de onde essa cena delicada foi extraída.

Em muitas culturas, não são os casamentos nem os nascimentos que unem a sociedade, mas a morte. Em Tana Toraja, na Indonésia, os funerais estão no centro da vida social. A antropóloga Kelli Swazey pesquisou durante anos esse relacionamento amistoso que o povoado tinha com a morte — e com seus mortos. Por lá, os cuidados com os corpos dos defuntos pode durar anos, já que consideram que os relacionamentos não se findam assim que a respiração de uma pessoa cessa.

Para nós, ocidentais, tal contemplação pode parecer um disparate bem distante. Não conseguimos lidar nem com a menor das perdas, quem dirá olhar com serenidade para a morte. Perder, muitas vezes, dói, machuca, nos revira do avesso. Perdemos também não só o objeto de afeto, mas o chão, o ar, a noção que orienta todas as coisas. Por que, afinal, perder abre essa fenda no nosso sentir?

 

A arte pede passagem

 

Talvez nenhum tema tenha atraído e inspirado tantos artistas como a perda. Mas Elizabeth Bishop, uma das mais importantes poetisas do século XX, foi na contramão das produções artísticas lamuriosas: transmutou a pesarosa carga da perda em algo banal, corriqueiro, que acontece a todo instante — e que, por conta disso, é melhor que nos acostumemos:

A arte de perder não é nenhum mistério.

Perdi duas cidades lindas. Um império

que era meu, dois rios, e mais um continente.

Tenho saudade deles. Mas não é nada sério.

Mesmo perder você (a voz, o ar etéreo, que eu amo)

não muda nada. Pois é evidente

que a arte de perder não chega a ser um mistério

por mais que pareça muito sério.

(Trecho do poema A arte de perder)


 

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Beatriz Rocha, artista convidada para desenvolver a identidade visual desta nossa trilha sobre finitude, diz que a arte, para além da atividade reflexiva de assuntos tão densos, também pode ser ferramenta de transmutação. No caso dessa imagem, cocriada com Larissa Dare especialmente para este texto que você está lendo, Beatriz quis traduzir a sensação feminina de tantas lutas e oportunidades perdidas — mas também de tantas janelas que, de punho erguido e coração aberto, somos capazes de abrir a partir do luto. “Inicialmente, a escolha era esconder o rosto, mas depois, percebemos que o rosto também simbolizava o embate. A ideia da perna para fora também surgiu durante o processo criativo, para simbolizar a nossa vulnerabilidade diante do que nos cerca e do que, muitas vezes, assusta e incomoda.”

Tememos perder porque não conseguimos lidar com a possibilidade de não saber o que vem a seguir. Fomos ensinadas que o futuro não é lá muito promissor e que toda perda é, então, uma grande lástima. Mas morte — das pequenas à grande — é ciclo, não fim. Se olharmos para uma infinidade de rituais de passagem perceberemos que quando uma determinada configuração se desfaz, mora ali a possibilidade de um novo começo — a menarca da mulher, o nascimento de um bebê, a formatura na universidade, o casamento e até o divórcio.

 

“Permitir que as coisas se dissolvam é, às vezes, chamado de desapego, mas sem a qualidade fria e distante que frequentemente se associa a essa palavra. Neste caso, o desapego inclui mais bondade e profunda intimidade. Na verdade, é um desejo de conhecer semelhante à curiosidade de uma criança de três anos. Queremos conhecer nossa dor para podermos para de fugir interminavelmente. Queremos conhecer nosso prazer para podermos parar de agarrar continuamente. Então, de algum modo, nossas perguntas tornam-se mais amplas e nossa curiosidade, mais vasta.”

Pema Chödrön, no livro Quando tudo se desfaz — orientação para tempos difíceis

 

Nem livro, nem curso, nenhum texto ou palestra do TED será capaz de transformar as perdas e os lutos em um lugar completamente confortável, seguro, agradável. Mas podemos nos tornar mais abertas para o sentir. Podemos estar mais preparadas para as certezas da vida: vamos perder aqui e acolá, inevitavelmente vamos morrer ou ver alguém que amamos partir. A finitude é da vida. Se nos aproximarmos dela com mais naturalidade, temos a chance de, quem sabe, ressignificar o significado hoje tão desolador de perda. Vamos juntas?
 


Gabrielle Estevans é jornalista, editora de conteúdo e coordenadora de projetos com propósito. Nessa trilha, é editora-chefe, participante e caseira. 


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